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Dioniso contra Sócrates: notas sobre metafísica, otimismo e pessimismo em O nascimento da tragédia de Friedrich Nietzsche

Camilo Lelis Jota Pereira

Para começo de conversa, o pessimismo enquanto um conceito filosófico pode ser compreendido como uma corrente de pensamento que, grosso modo, se caracteriza pela defesa da ideia sobre o mundo ser essencialmente negativo. Por “mundo negativo” entende-se uma realidade que não permite que esperemos dela coisas significativas na medida em que aceitemos ao menos duas premissas: a) todo querer seguirá o ciclo desejo-satisfação-frustação-novo desejo e b) independentemente de qualquer coisa, morremos no final. Como disse o grande sambista Cartola: o mundo é um moinho que vai reduzir as ilusões a pó.

Reconhecido isto, muito debateu-se em filosofia sobre características gerais que podemos oferecer, de maneira coerente e lógica, para a analisar e tirar conclusões a respeito da situação da vida humana em geral. Deste modo, uma vez aceitando as premissas desse pessimismo como válidas, alguns filósofos não se apressarão em dizer que a vida é marcada pelo sofrimento e pela dor.

Essa visão pessimista pode ser encontrada em diversas tradições filosóficas e culturais ao longo da história. A título de ilustração, vamos ver essa questão no famoso livro de Jó. Como sabemos, a história de Jó começa com a descrição de um homem que é extremamente rico e abençoado, mas que perde tudo o que possui – sua riqueza, seus filhos e até mesmo sua saúde – após Deus permitir que Satanás teste a sua fidelidade. Apesar de toda essa tragédia, Jó mantém a sua fé em Deus e se recusa a amaldiçoá-lo. A partir daí, o livro apresenta uma série de diálogos entre Jó e seus amigos, que tentam explicar o motivo do sofrimento humano.

Um dos argumentos apresentados é o de que o sofrimento é uma punição divina pelo pecado ou pela falta de fé. No entanto, Jó se recusa a aceitar essa explicação e mantém a sua confiança em Deus, mesmo sem entender o motivo de seu sofrimento. Em certa altura da investigação de Jó, Deus se manifesta diretamente a ele e lhe faz uma série de perguntas retóricas, sugerindo que a sabedoria divina é incompreensível aos seres humanos e que a existência humana é limitada e frágil. Ao final da história, Deus restaura a fortuna e a saúde de Jó, demonstrando a sua fidelidade e recompensando-o por sua fé inabalável.

Uma leitura possível da história de Jó sugere que a vida humana é marcada por dificuldades e que a sabedoria divina está além da compreensão humana, destacando a questão da fé mesmo diante do sofrimento e da dor.

Como ficou célebre ao longo do tempo, Jó é dotado de uma paciência diferenciada. Todavia, mesmo o paciente Jó, em certo ponto da história, perde a paciência e começa a questionar a Deus, expressando sua angústia e desespero diante de tanto sofrimento. Esse momento ocorre no capítulo 3 do livro de Jó, logo após ele ter sido afligido com a perda de seus filhos, de sua riqueza e de sua saúde. Nesse ímpeto, Jó amaldiçoa o dia em que nasceu e lamenta a sua própria existência, desejando ter morrido antes mesmo de ter nascido.

Ante a isso, é uma questão justa nos perguntarmos sobre se o sofrimento pode ser, de alguma forma, justificado. Encurtando nossa prosa por aqui, quais justificativas para o sofrimento humano podemos oferecer levando em conta o que sabemos hoje em dia? É aí que temos a questão do pessimismo. Contudo, notemos, não se trata de um questionamento psicológico no sentido de compreender qual pessoa está disposta a ver “o copo mais cheio ou mais vazio”. Trata-se da tentativa de pensar a questão dentro da objetividade possível ao tema. Neste sentido, uma das fontes mais importantes para esse tema é a filosofia do autor alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860). Schopenhauer vai estruturar esse discurso pessimista no século XIX cuja popularidade faz o debate ganhar o contorno de suas teses sobre a inevitabilidade metafísica do sofrimento humano.

Também é importante salientar que o pessimismo também é uma corrente de pensamento presente em algumas vertentes da filosofia oriental, como o budismo, que considera o sofrimento uma condição inerente à existência humana e que busca a libertação dessa condição por meio da prática de meditação e da compreensão da natureza da realidade.

Com isso em mente, apresento meu artigo sobre essa questão pela perspectiva do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). O link para o artigo completo estará no final. No texto eu destaco o objetivo principal do trabalho de Nietzsche que vai, ao mesmo tempo, afirmar e negar o pessimismo. Como assim? Em suma, ele nega alguma característica do pessimismo de Schopenhauer no sentido de adequar o pessimismo para ser uma contradoutrina dionisíaca ao otimismo, e não uma negação da vida. Isso foi feito analisando a interpretação de Friedrich Nietzsche sobre o filósofo ateniense Sócrates no livro O nascimento da tragédia.

O termo “dionisíaco” se refere ao deus grego do vinho, da fertilidade e do êxtase, e é frequentemente associado à irracionalidade, ao caos e ao inconsciente. Nietzsche usou esse termo para descrever o impulso artístico que é impulsionado pelas forças irracionais e instintivas da vida. O termo “contradoutrina” se refere a uma doutrina que contradiz ou se opõe à doutrina que colocou em termos simplistas a oposição entre otimismo e pessimismo, como se só existisse uma única maneira de ser pessimista ou otimista. A nuance é o importante!

O artigo conclui apontando para o escopo dos conceitos de pessimismo e otimismo dentro do esquema construído pelo filósofo. Apesar de não aprofundar no texto, cabe destacar que entendo a compreensão de Nietzsche como atual e necessária para o século XXI, já que apresenta detalhes significativos para a gradação psicológica sobre o paradoxo de viver em uma sociedade ao mesmo tempo cansada e hiperativa como a nossa. Ora, os termos “pessimismo” e “otimismo” referem-se a atitudes filosóficas em relação à vida, mas o pessimismo não é a crença de que a vida é fundamentalmente ruim ou má, tampouco o otimismo é a crença de que a vida é fundamentalmente boa ou significativa. Para Nietzsche, existe matizes para chegarmos ao tipo correto de pessimismo: aquele que, assim como Jó o fez uma vez, questiona as justificativas para o sofrimento humano, mas aponta para um aspecto criativo do dionisíaco que, mesmo não encontrando (ou não se satisfazendo com) justificativas, promove o jubilo por estar vivo e participando do viver. À guisa de conclusão, miremos o diálogo entre Ulisses e a psukhé (alma) de Aquiles no Hades:


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Ó Aquiles, filho de Peleu, o mais forte dos Aqueus,

vim por necessidade de Tirésias, para que algum conselho

ele me dê sobre como eu possa chegar à rochosa Ítaca.

Pois ainda não cheguei perto da Acaia, nem sobre minha

terra pus os pés, e sempre suporto males; mas do que tu, Aquiles,

nenhum homem antes (foi) mais bem-aventurado nem (será) a seguir.

Pois antes, estando vivo, te honrávamos como aos deuses,

nós os Argivos, por sua vez agora tens amplo poder sobre os mortos,

estando aqui; por isto não te aflijas por estar morto, Aquiles.

Assim eu disse, e ele, de imediato retrucando, disse para mim:

Não me consoles da morte, ilustre Ulisses!

Preferiria, sendo um lavrador, alugar meus serviços a um outro,

a um homem sem-lote, que não tem muitos recursos,

do que reinar entre todos os mortos já perecidos.

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(Odisseia XI, 478-491)[1]

 

[1] HOMERI Opera tomi III-IV: Odyssea. Oxford: Oxford University Press, (first edition) 1908, (fifteenth edition) 1987.


Este texto integra o artigo científico publicado na edição de fevereiro de 2023, da Griot: Revista de Filosofia, periódico científico do Centro de Formação de Professores (CFP) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), campus Amargosa.  Confira na íntegra, neste link.


 

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