A paisagem única do Cerrado brasileiro, uma das savanas mais ricas e biodiversas do planeta, enfrenta desafios críticos em relação à conservação ambiental e à exploração responsável de seus recursos naturais. No Brasil, um grupo de pesquisadores, do qual fazem parte Michel Chaves e Guilherme Mataveli, egressos do curso de Geografia da UNIFAL-MG, estuda a atual situação do bioma e a importância das ações conjuntas na conservação e restauração.
Em carta publicada recentemente na revista Nature Sustainability, os pesquisadores, junto aos colegas Ieda Sanches e Marcos Adami, da Divisão de Observação da Terra e Geoinformática (DIOTG), em parceria com Rafaela Aragão (Griffith University) e Erasmus zu Ermgassen (UCLouvain – Université catholique de Louvain), alertam para a situação atual do bioma Cerrado e propõem mecanismos para restaurar a plenitude de suas funções ambiental, econômica e social. A discussão é central em meio às negociações para o acordo Mercosul-União Europeia.
No panorama apresentado pelos geógrafos, que atualmente se encontram em pós-doutoramento no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), apesar de o bioma do Cerrado ser essencial para o clima global e o armazenamento de carbono, e fornecer água para diferentes regiões, incluindo a região Sudeste, a mais populosa do país, o desmatamento tem aumentado constantemente. “Em 2022, foi 25% maior que em 2021 e quase igual ao total desmatado na Amazônia, que tem o dobro da área. Nos últimos anos, cerca de 3/4 do desmatamento ocorreu no MATOPIBA, a atual fronteira de expansão agrícola no bioma”, frisa Michel Chaves.
Outro fator que chama a atenção dos pesquisadores é que atualmente o Cerrado está excluído de esforços para a sustentabilidade, como a Moratória da Soja. Na esfera nacional, os pesquisadores apontam projetos de lei que podem piorar a situação, como aqueles voltados para a regularização fundiária das ocupações em terras situadas em áreas da União: PL-2633/2020, PL-510/2021 e PL-337/2022.
A nova legislação europeia sobre a importação de produtos livres de desmatamento também preocupa os geógrafos. “A nova legislação europeia de due diligence adota uma definição estrita de floresta que deixa 74% do bioma desprotegido, tornando o Cerrado uma ‘zona de sacrifício’ para o desenvolvimento agrícola”, pontua Guilherme Mataveli.
Segundo os pesquisadores, os principais desafios enfrentados para a restauração das funções ambientais do Cerrado, estão associados ao ritmo da perda de serviços ecossistêmicos e ao interesse político, público e privado. “A perda de vegetação nativa no Cerrado tem contribuído para eventos climáticos extremos na última década, aumentando fluxo de calor sensível à superfície, reduzindo a evapotranspiração e a produtividade agrícola, ameaçando a viabilidade de sistemas de cultivo múltiplo e causando concentração exacerbada de terras e endividamento dos agricultores”, explica Michel Chaves.
Guilherme Mataveli acrescenta que essa expansão desordenada pode, já em um futuro próximo, ser péssima para a própria atividade agrícola. “Mecanismos para restaurar as funções ambientais do Cerrado são urgentes”, afirma. “Nossa proposição é, justamente, que este bioma seja tratado como prioridade nas negociações para o acordo Mercosul-União Europeia e seja respeitado como o motor da capacidade agroambiental brasileira.”
Acordo Mercosul-União Europeia
Os pesquisadores também analisam o acordo Mercosul-União Europeia, o qual prevê que em 10 anos as tarifas de exportação da América do Sul a Europa, seja zerada e, em contrapartida, a Europa precisa realizar a retirada de 91% das tarifas de exportação que ela faz ao Mercosul.
Para os geógrafos, o Cerrado é lembrado apenas por seu potencial agrícola. “Sua condição de ser a savana mais biodiversa do mundo, regular o clima, fornecer água e estocar carbono, acaba negligenciada”, reforça Michel Chaves.
Conforme o pesquisador, o Brasil não conseguirá conservar o bioma e promover políticas sustentáveis se continuar negligenciando o potencial ambiental deste bioma. “Em termos comerciais, o Brasil possui mercado na Europa. Contudo, os consumidores europeus têm se empenhado em evitar produtos com origem em áreas desmatadas. Trazendo para nossa realidade, temos visto que, atualmente, há áreas de produção em áreas desmatadas de forma irregular”, enfatiza.
Michel Chaves observa que no próprio acordo, não há espaço para o Brasil permitir desmatamento em sua cadeia de produção. “É preciso priorizar estratégias que unam provisão de serviços ecossistêmicos e produção agrícola”, salienta.
Na opinião dos pesquisadores, o acordo pode trazer benefícios sociais às comunidades locais, incentivando a conservação e o desenvolvimento sustentável para o Cerrado, desde que sejam estabelecidas salvaguardas ambientais e educacionais no acordo. Eles explicam que a expansão agrícola no Cerrado tem sido impulsionada pelo alto retorno financeiro da agricultura, pelo viés histórico para a conservação dos biomas florestais, como a Amazônia, e pelo ambiente político favorável ao agronegócio.
Guilherme Mataveli contextualiza que os investimentos tecnológicos no Cerrado elevaram a produtividade brasileira de grãos de 1.258 para 4.048 kg ha-¹ desde a década de 1970 (série histórica de safra da CONAB), indicando que a atividade agrícola pode ser conciliada com políticas conservacionistas.
Ele analisa, porém: “Como o desmatamento é um negócio de alto risco sensível à retórica política, uma questão aberta e inexplorada em relação à grande flutuação nas taxas de desmatamento após mudanças nas políticas governamentais de eleição para eleição é se isso está associado apenas a um plano nacional inconsistente para proteger o capital natural ou também à falta de políticas estruturais de desenvolvimento educacional e tecnológico para melhorar o PIB per capita e alimentar um mundo faminto de forma sustentável.”
Diante desse cenário, Michel Chaves acrescenta: “As atividades preventivas e/ou de fiscalização focadas na preservação ou conservação do bioma e projetos de educação ambiental (pensando no longo prazo) podem trazer benefícios sociais e educacionais a todas as comunidades que residem no bioma.”
Mecanismos de proteção do Cerrado
A articulação entre os setores envolvidos, nomeada como “governança integrada” pelos pesquisadores, é apontada como possível estratégia para restaurar o Cerrado brasileiro. “Os esforços não precisam ser, sempre, ‘de cima para baixo’”, diz Guilherme Mataveli.
Experiências bem-sucedidas dentro do próprio Cerrado também são destacadas pelos pesquisadores. Entre elas, o Programa Conservador das Águas, em Extrema-MG, que une o setor público aos proprietários rurais por meio de incentivos financeiros, com o intuito de manter a qualidade dos mananciais do município e promover a adequação de propriedades rurais; o Mecanismo de Conservação do Cerrado, um fundo privado de financiamento para produtores de soja no Cerrado.
“A grande dificuldade é implementar estas ações em um bioma que tem dimensão de um país”, avalia Guilherme Mataveli.
Na opinião dos pesquisadores, o aumento da proteção do bioma Cerrado deve ser complementado com planejamento territorial focado na formação de corredores ecológicos e na recuperação de pastagens degradadas. “De acordo com o Atlas das Pastagens Brasileiras (2023), as pastagens degradadas representam 27% de todas as pastagens do Cerrado”, ressalta Michel Chaves. “Instituições de pesquisa avançada focadas no Cerrado podem liderar esse planejamento”, acrescenta, afirmando que o fundo de proteção ambiental discutido na 27ª Conferência das Partes das Nações Unidas (COP27) poderia financiar a criação destas instituições e a promoção de políticas para todo o bioma.
A carta publicada teve apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Para acessar, clique aqui.
Artigos de autoria dos pesquisadores:
Melhorias na identificação de áreas agrícolas no bioma Cerrado
Conversão de uso e cobertura da terra em áreas protegidas no bioma Cerrado
Sobre os pesquisadores
Os pesquisadores Michel Chaves e Guilherme Mataveli concluíram a graduação em Geografia na UNIFAL-MG no ano de 2011. Hoje, são pesquisadores de pós-doutorado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
Michel Chaves é doutor em Engenharia Agrícola pela Universidade Federal de Lavras (UFLA) e atualmente trabalha com monitoramento agrícola no Cerrado a partir de séries temporais de imagens de satélite, financiado pela FAPESP. O pesquisador integra dados de campo, variações de calendários agrícolas, técnicas de machine learning, deep learning e índices espectrais para aprimorar a identificação de culturas e o acompanhamento de ciclos fenológicos no bioma, visando apoiar políticas de desenvolvimento sustentável, segurança alimentar e ordenamento territorial.
Guilherme Mataveli é doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP) e sua pesquisa de pós-doutorado visa aprimorar as estimativas das emissões associadas à queima de biomassa integrando modelagem e sensoriamento remoto. Tal estudo se baseia principalmente na atualização dos parâmetros de uso e cobertura da terra na ferramenta PREP-CHEM-SRC. O egresso da Universidade é também pesquisador visitante na University of East Anglia, financiado pela FAPESP, onde estudo o impacto dos fatores de emissão na estimativa das emissões.