Escrita criativa (2)

Sob quase todos os aspectos superior à obra anteriormente comentada, o pequeno manual Escrever com criatividade, de Luciano Martins, começa por ser muito mais bem escrito. A esse autor, que também publicou obras literárias, não se pode negar o dom da criatividade: seu texto é poroso, cheio de surpresas e inclui um inteligente sistema de pausas e desvios que torna sua leitura bastante agradável. Apenas lhe falta a sistematização de um caminho viável para chegar à criatividade; ele não ultrapassa muito o limite da autoajuda ao sugerir que a criatividade esteja perto do alcance de qualquer pessoa, não ressalvando o considerável esforço e a persistência necessários para atingi-la. Ao contrário, às vezes dá a impressão de que escrever é fácil:

O texto também é assim: quando você dá início à história, ela vai se estendendo à sua
frente, só que nem todo mundo a vê. À medida que você se atreve a continuar
caminhando, ela vai se revelando sob a forma de palavras, como se tivesse existido em
algum lugar por toda a eternidade, à espera do mago ou da feiticeira que a viesse
resgatar.

O autor é culto e mobiliza uma importante compreensão filosófica do problema; remete a muitas fontes interessantes, é capaz até de incluir na conversa uma rápida aulinha sobre ondas e mecânica quântica, mas pouco ultrapassa o nível de uma charmosa aula de cursinho pré-vestibular. Seu tratado é um manual de redação para o ensino médio (antes da formatação mental idiotizante forçada pelo Enem), porém menos didático na medida em que enfatiza pouco os exercícios práticos. Parte de uma suposição bastante enganosa, a de que os candidatos à escrita criativa sejam capazes de seguir conselhos um tanto genéricos, do tipo “não usar roupa de domingo” ao selecionar o vocabulário. Insiste muito no quê, mas não sinaliza de maneira eficaz o como.

Luciano Martins se preocupa, e corretamente, com a desinibição da escrita. De fato, o medo de escrever é problema comum entre iniciantes. Talvez, porém, fosse mais interessante recomendar que fizessem um bom curso de teatro, no qual aprenderiam técnicas de relaxamento, bastante úteis no caso. Dos conselhos para perder a inibição, as dicas do professor progridem pouco além do brainstorm, da pesquisa sobre os temas a serem tratados no texto e da imitação do estilo de bons escritores. É marcante, nos exemplos que usa, a ausência de textos poéticos – sendo a poesia, em geral, onde se fazem as mais ousadas e surpreendentes experimentações com a linguagem verbal e com as estruturas textuais.

Ao propor um exercício de discussão da eutanásia, o autor não nos conta como seria possível passar da dimensão coletiva para a individual. Será que o tímido Machado de Assis, sem dúvida um dos escritores mais criativos de todos os tempos, seria bem-sucedido em tal exercício? O mesmo se diga sobre a ênfase na oralidade: sendo Machado gago, poderia ser considerada uma boa solução, para ele, tentar aprimorar em público sua criatividade? Ou será que, para muita gente em condições semelhantes, a possibilidade de ser criativo residiria justamente na introversão?

Talvez o ganho realmente importante em ler esse livro, além do estilo que faz sua leitura ser prazerosa, seja esta explicação da técnica de atribuir partes do texto a locutores imaginários, colocada numa das últimas páginas do volume:

Nessa área intermediária entre a realidade interna que se quer manifestar e a realidade
externa (representada, neste caso, pela exigência de apresentar um texto como resultado),
localizam-se as expressões mais profundas do ser humano. É ali que se formam as
experiências vivenciais e ali se definem muitas das habilidades de relacionamento. As
figuras dos “locutores” colocadas nesse espaço podem funcionar como objetos
transicionais entre subjetividade e realidade, ajudando na formação de uma atitude
menos temerosa e mais criativa diante da necessidade de comunicação.

O esclarecimento ajudaria a justificar a insistência do autor, ao longo de sua preceptiva, no exercício dos locutores imaginários. Mesmo assim, como se vê, diz muito mais respeito ao aspecto psicológico do processo de comunicação do que a uma técnica que leve à revelação do segredo de compor textos originais.

Escrever com criatividade termina, bem no espírito de um livro de autoajuda, manifestando o otimismo do autor sobre o uso de certo “pensamento sistêmico” e definindo a criatividade como uma espécie de “descanso de tela que entra em ação em sua mente sempre que você quiser ou precisar”. A metáfora parece um pouco equivocada, pois descanso de tela é justamente uma imagem apta para figurar o automatismo das mentes hipnotizadas pelo cotidiano repetitivo, que precisa ser rompido para que a criatividade possa emergir.

Voltando à consideração feita no início da resenha anterior, livros assim nos obrigam a imaginar: como seria um bom manual de escrita criativa? É claro que o primeiro passo tem de ser dado no plano psicológico, pois muitos candidatos a escritores precisam superar, inicialmente, inibições pessoais, sejam inatas ou criadas pelas condições sociais em que vivem; aí é óbvio que os exercícios e as dinâmicas seriam mais úteis que a teoria. Depois, a prática da escrita poderia funcionar melhor se fosse guiada por exemplos de teoria da comunicação e poética (incluindo a narrativa e a teatral) aplicadas.

Finalmente, talvez esse manual devesse consistir menos em uma sequência de conselhos teórico-motivacionais do que numa boa antologia comentada de exemplos. Em se tratando de poesia brasileira – apenas para exemplificar minimamente –, poderiam vir logo no começo os famosos poemas “Quadrilha” e “No meio do caminho”, que explicam direitinho por que Carlos Drummond de Andrade é considerado um de nossos autores mais criativos. No capítulo da prosa, não poderiam faltar algumas crônicas de Luís Fernando Verissimo, especialmente as inseridas no estrondoso best-seller O analista de Bagé (1980): “Palavreado”, “Angélica”, “Sfoc poc” e a série “Pôquer interminável”; também poderia entrar ao menos um ou outro exemplo dos Exercícios de estilo (1947), de Raymond Queneau. Enfim, não faltariam bons exemplos de criatividade na melhor tradição literária, especialmente a moderna. Em outros lugares, já seria mais difícil encontrá-los.

Exposto longamente a uma tal antologia, parece que um aspirante a escritor teria maiores chances de encontrar o caminho de sua própria criatividade. Está faltando um livro assim, como demonstram, por subtração, os dois exemplos aqui comentados, que são uma significativa amostra das publicações a respeito do tema que têm saído no Brasil.

Título: Escrever com criatividade
Autor: Luciano Martins
Gênero: Língua Portuguesa
Ano da edição: 2001
ISBN: 978-85-7244-165-0
Selo: Contexto


Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

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