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Guimarães Rosa, 52 a.Z. | Jornal UNIFAL-MG

Guimarães Rosa, 52 a.Z.


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Nem o húngaro-brasileiro Paulo Rónai, com os privilégios de sua erudição e da amizade com João Guimarães Rosa, arriscou-se a emitir juízos definitivos sobre Tutameia (1967). Em posfácio ao último livro do escritor, Rónai diz que “Nós, os temulentos”, um dos quatro prefácios escritos pelo próprio autor para o volume, “deve ser mais” que uma sequência de piadas de bêbado.

Foi cheio de cuidados que Rónai se acercou de Tutameia, mesmo com sua capacidade de produzir essas bulas (os posfácios são dois) tão imprescindíveis quanto ainda são as de Haroldo de Campos para as três principais obras de Oswald de Andrade – não se deve ler Memórias sentimentais de João Miramar, por exemplo, sem passar antes pela introdução “Miramar na mira”. É que, como declarou o próprio Rosa, ali estava mea omnia, ou seja, seu todo: as “terceiras estórias”, supondo que ainda haveria as segundas entre elas e o admirável Primeiras estórias (1962), são a súmula da ficção rosiana, o mais amplo e adequado observatório da espantosa inventiva do autor de Grande sertão: veredas (1956).

Mesmo com as tais reticências de Rónai, o leitor tem tudo para sair duplamente maravilhado, tanto pela obra em si como por sua explicação. Se Guimarães Rosa foi capaz, no dizer do crítico, de “matizar infinitamente a língua”, pouca gente teve ou tem a capacidade de ler sua obra como aquele amigo, que começa falando de uma conversa entre ambos a respeito da última reunião de contos de Rosa (ele morreu logo depois de publicá-la). Nessa conversa, o ficcionista lhe dizia ter grande apreço pelo livro, apesar de haver posto nele um título que significa “coisa de pouca importância”. Grande brincalhão, Rosa contou-lhe ter armado ali uma enfiada de arapucas para “eles” – os críticos.

São quarenta contos bem curtos, organizados pela ordem alfabética de seus títulos, que começa por “Antiperipleia” e termina por “Zingaresca”. O palavreado insólito não surpreende quem tenha lido qualquer texto rosiano, pois um dos traços mais evidentes de seu estilo é a abundância do léxico – boa parte dele inventado, tendo sido Rosa sempre prolífico na criação de neologismos. Na ordem alfabética se incluem os ditos prefácios, cuja simples multiplicidade já denota a estranheza do conjunto: onde já se tinha visto livro com quatro prefácios?

Para economizar espaço, transcrevamos as certeiras definições de Rónai para alguns deles: “Aletria e hermenêutica” é, segundo ele, uma “pequena antologia de anedotas que versam o absurdo”, além de “definição de ‘estória’ no sentido especificamente guimarães-rosiano” – vale dizer, um pequeno tratado sobre as possibilidades da narrativa que se abeira do nonsense como investigação do Ser e do mundo. É Rosa flutuando nos mesmos ares onde os sábios budistas costumam apanhar seus koans, pequenos ditos desconcertantes capazes de deflagrar a iluminação, o satori. E nada há de arbitrário na comparação, pois o mineiro de Cordisburgo, além de tantos outros atributos (como ser supersticioso e dominar 12 idiomas), era bastante versado em orientalismo.

“Hipotrélico” é outra antologia, mas de “divertidas e expressivas inovações vocabulares”, incluindo uma piada de português; “Nós, os temulentos”, sequência de piadas de bêbado compondo o conto sobre um deles, que tenta, em meio aos vapores da embriaguez, voltar para casa. “Sobre a Escova e a Dúvida”, por sua vez, desenvolve a teoria do escritor acerca do nascimento de seu vezo de duvidar das verdades alheias, originado na implicância, ainda menino, com a absurdidade que via na ordem dos adultos para que escovasse os dentes logo depois de acordar, sendo que eles seriam, já em seguida, sujados pelo desjejum.

Os prefácios estão intercalados, a intervalos, na sequência dos contos. Destas “estórias”, também Paulo Rónai oferece sínteses em poucas páginas de linguagem ágil e concisa. Um dos melhores contos (“João Porém, o criador de perus”) relata a vida do homem que “cria amor e mantém-se fiel a uma donzela inventada por trocistas” – estará certíssimo quem pensou numa versão sertaneja do engano amoroso de Dom Quixote. Mas Rónai não inclui em seu resumo outra narrativa de amor (elas não são poucas em Tutameia), “Orientação”, na qual o improvável cozinheiro chinês de certo engenheiro ferroviário se apaixona por uma mulher feia. É outro conto que merece destaque, até por ser um dos mais fáceis de entender: não é fácil navegar pelo estilo rosiano.

A amostragem, por definição, não poderia ser totalizante, mas ainda pôde incluir “Grande Gedeão”, a divertida fantasia do sujeito que, por haver entendido errado uma frase bíblica, abandonou para sempre o trabalho.  Outra “estória”: a do marido enganado que se empenha em convencer os vizinhos e conhecidos de que a infidelidade não havia ocorrido. Rónai vai até o final da lista, notando que “Zingaresca” é uma de três narrativas do livro que têm ciganos como personagens.

Já se vê que seria uma “conversa infinita”, para tomar emprestada a expressão de Maurice Blanchot, a tentativa de dar uma ideia redonda de Tutameia. Demandaria penetrar, por picadas labirínticas, numa floresta de espelhos onde a invenção verbal e a magia narrativa remetem reciprocamente uma à outra, exigindo um compromisso de atenção total e uma disposição prévia de, logo após terminada a leitura, recomeçá-la. Como qualquer livro de Guimarães Rosa, e talvez mais do que todos os outros, Tutameia pede leitores apaixonados e capazes de releituras pela vida afora.

Apenas, para não ficar na síntese de Rónai, mencionemos alguns exemplos do sortilégio verbal rosiano. O escritor era capaz de inventar um cachorro chamado “Eu-Meu”, ligando o guardador de porcos que figura na Odisseia a ressonâncias psicanalíticas impossíveis de evitar numa obra moderna; um anão chamado Dinhinhão; e um “preto Mozart”, apenas citar para três casos isolados de sua sistemática onomástica sarcástica. Ainda: vai buscar na paródia de um best-seller americano outra daquelas suas inumeráveis sentenças filosóficas: “O sol morre para todos.” Em infinitas tocaias para apanhar a graça da fala sertaneja, chega a escorregar para um neologismo tão urbano como “copoanheiros”, companheiros de copo. Mas, em compensação, enviesa e reverte a exclamação casimírica em “Ah, que saudades que eu não tenha…”. Evitando seguir rumo ao infinito, citemos só três neologismos desconcertantes: inteligentudo, lunático de mel e desalegria. E, fazendo um último esforço para fugir ao encanto dessa linguagem, lembremos que certo personagem foi mandado para “nenhenhenhas cafunduras” e outro, que tinha “os bigodes do rei de copas”, para fazer mesuras puxassacais (veja, leitor: é contagioso!) ia “subindo fingidas ladeiras”.

Não se imagine que Guimarães Rosa era só um contador de “estórias” que brincava com a linguagem. Muitos aspectos de sua inventiva ficaram intocados nesta resenha e ficarão em qualquer outra – o estilo rosiano é, como todo clássico, inabarcável e inesgotável. Analisá-lo exigiria embarafustar por seus acachapantes manejos da sintaxe – ramo da pesquisa sobre o autor que ainda estava por empreender, dizia Paulo Rónai em 1968 (ano de que datam seus prefácios), e que continua, mais de meio século depois, na primeira infância teórico-crítica.

Porque é preciso terminar, e porque até há desculpas para um padre beber cachaça, pois só assim poderia aguentar “remir mundo tão em desordenância”, vamos transcrever um trecho de Rónai que explica muito a respeito dos caminhos pelos quais Guimarães Rosa chegou a seu inigualável modo de escrever:

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O pendor do sertanejo para o lacônico e o sibilino, o pedante e o sentencioso, o tautológico

e o eloquente, a facilidade com que adapta seu cabedal de expressões às situações

cambiantes, sua inconsciente preferência pelos subentendidos e elipses, seu instinto de

enfatizar, singularizar e impressionar são aqui transformados em processos estilísticos.

Na realidade o neologismo desempenha nesse estilo papel menor do que se pensa.

Inúmeras vezes julga-se surpreender o escritor em flagrante de criação léxica; recorra-se,

porém, ao dicionário, lá estará o vocábulo insólito (acamonco, alarife, avejão, brujajara,

carafuz, chuchorro, esmar, ganjã, grinfo, gueta, jaganata, marupiara, nómina, panema,

pataratesco, quera, sáfio, seresma, séssil, uca, voçoroca, etc) (…)

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Agora, leitor ou leitora, imagine a raiva profunda que Guimarães Rosa teria da “inteligência” artificial que faz a correção automática de mensagens no celular…

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