O leitor que assistiu à série feita pela Globo sentirá falta de algumas coisas no romance Hilda Furacão (1991), que a inspirou. Não só de Ana Paula Arósio e Rodrigo Santoro, mas de boa parte da história de amor que eles encarnam. O livro de Roberto Drummond, como costuma ocorrer nesses casos, foi reescrito para caber no formato televisivo, e em muitos aspectos a equipe de roteiristas o aprimorou; nesse processo, como também é costumeiro, deixou de lado elementos importantes da narrativa. É sempre bom lembrar que ingredientes essenciais a uma obra literária podem ser muito difíceis de traduzir em imagens.
Feita a advertência, os que superarem o desapontamento tendem a encontrar na obra uma leitura muito agradável. Os capítulos curtos e o estilo quase jornalístico fazem desse o romance em que Roberto Drummond, mineiro de Ferros, cidade situada a 170 km da capital, mais conseguiu distanciar-se de certo experimentalismo às vezes um pouco ocioso em termos de economia narrativa. Além disso, estão encartadas no enredo uma interessante mitologia local de Belo Horizonte e uma saborosa crônica dos anos heroicos do jornalismo belo-horizontino, aqueles em que a agonizante sucursal da Última Hora de Samuel Wainer convivia com a revista Alterosa e com o semanário Binômio, uma espécie de tio do Pasquim. E, claro, com o Estado de Minas, remanescente dos Diários Associados de Assis Chateaubriand onde acabou se refugiando boa parte dos sobreviventes àquele período lendário.
Essa camada narrativa é a mais fluente e engraçada de Hilda Furacão, e decorre na maior parte das memórias do jornalista Roberto Drummond, cuja pessoa física se assume como narrador e protagonista do romance. A personagem que figura no título aparece e reaparece, das primeiras às últimas páginas, para conduzir o nervo propriamente ficcional da história, que não é o mais importante. Junto a ela comparece Frei Malthus, frade dominicano conterrâneo do narrador, cujo cognome “Santo” não fica, como aliás muita coisa no enredo, devidamente explicado.
Há ainda uma terceira camada, os fatos que se passam na terra natal do narrador, de Frei Malthus e de um terceiro amigo, insistentemente mencionado como “Aramel, o Belo”. Os três vêm de Santana dos Ferros (nome anterior à emancipação do município), cujas notícias chegam a Drummond por meio de cartas de uma de suas tias solteironas, Çãozinha (sic); que lhe fala, por exemplo, da campanha da outra tia, Ciana, para obrigar o pároco local a cobrir as partes pudendas de Adão, o primeiro homem, pintado ao natural na nova igreja matriz da cidadezinha pela artista plástica Yara Tupinambá.
A surpresa, caso o leitor vá pesquisar: de fato a pintora fez o tal painel bíblico-erótico em Ferros. E não é um episódio isolado: muitas das passagens do livro são mais crônicas histórica do que ficção. Assim, é fato que um tal Antônio Luciano era dono do hotel Financial, onde ainda na década de 1980 se hospedavam coronéis da política interiorana, até um certo mandatário alfenense que por lá morava quando em tratativas junto aos governos de Tancredo Neves e Hélio Garcia. Agora, se de fato esse Luciano vivia na cobertura do hotel com uma onça chamada Teresa, é outra história…
O livro contém divertido anedotário de uma época situada no final dos anos 1950 e início dos 60, e nesse sentido se aproxima de obras como O encontro marcado (1956), de Fernando Sabino, e O desatino da rapaziada (1992), de Humberto Werneck, ainda que estes se reportem a períodos anteriores. Não deixa de lembrar, também, o magnífico A festa (1976), de Ivan Ângelo, um dos melhores romances brasileiros publicados sob o regime instaurado pelo golpe militar de 1964.
Quanto ao estofo propriamente ficcional, beneficia-se bastante dessa intersecção com fatos e personagens reais. Mesmo assim, é às vezes meio confuso e vacilante; vale dizer, a parte menos interessante no romance é a propriamente romanesca.
Quando a história começa, um padre-vereador de Belo Horizonte e Dona Loló Ventura, típica beata que depois encabeçaria a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, estão movendo uma campanha em favor da construção da Cidade das Camélias, que seria um local, longe do centro da cidade, destinado ao exercício da prostituição. É que a presença de prostíbulos na rua Guaicurus, perto do centro da capital, incomodava a tradicional família mineira, ainda mais que uma típica filha da alta sociedade, pouco antes a estrela das missas dançantes (existia isso, incrível!) no Minas Tênis Clube, havia deixado seu respeitável noivo no altar, com cara de tacho, e se convertera na mais concorrida prostituta da Guaicurus.
Do confronto entre partidários da solução moralista e adeptos da liberdade para as “camélias”, começa a formar-se uma radicalização em que, loguinho, todo e qualquer liberal ganha o apodo de “comunista”, numa clara prefiguração do que seria o golpe de 1º de abril – situado na data certa por Roberto Drummond, que viveu intensamente aqueles dias sombrios. É a partir desse confronto que Hilda Furacão e o Santo se conhecem, acabam apaixonando-se e vivem um drama amoroso entrelaçado à gestação do golpe militar. Quanto a esta, a perspectiva do romancista é um tanto idealista, imantada por sua fixação pela aventura cubana de Fidel e companhia; mesmo assim, ele consegue ser, ao contrário do típico esquerdista enfezado, sarcástico a propósito do fervor stalinista que ainda grassava entre os partidários brasileiros do comunismo naquela época, e aliás durou no PCdoB, pelo menos, até meados da década de 1980: há no livro uma cena em que o temido líder de uma célula comunista se porta, surpreendentemente, como um monge zen, e outra em que um tresloucado revolucionário insiste em ocupar, sozinho, a Serra do Curral.
O melhor do romance é mesmo quando Drummond – que, sim, era parente do poeta e daquela Miss Minas Gerais que foi mulher do colunista social Ibrahim Sued e causou sensação no casamento do xá da Pérsia com Farah Diba – despe a capa de ficcionista e fica vestido somente com o uniforme de cronista. É aí que os entusiastas da série global mais tendem a decepcionar-se com o livro, e o livro com eles.
Onde encontrar: livrarias e sebos