Twin Otter T-87, obra das irmãs Malen e Suyai Otaño, é uma narrativa complexa em sua semanticidade. O foco principal pela qual se orienta é a busca pelos restos do helicóptero que dá nome à obra. Em 1977, o avião que transportava seus avós, Miren Angélica Felder e Antonio Ulderico Carnaghi, caiu no Morro Paleta, perto de El Bolsón, na fronteira entre as províncias de Rio Negro e Chubut. A causa do “acidente” nunca foi esclarecida, uma falta de conhecimento que levou às autoras a realizar uma viagem por terra até a área suposta do desastre e subir o morro para encontrar quaisquer restos metálicos. Esse périplo é acompanhado por moradores locais e historiadores amadores que oferecem às viajantes informações e depoimentos sobre o ocorrido, dados que escapam ao discurso oficial, já que lhes é negado o acesso aos relatórios militares. Assim, as irmãs Otaño recriam o evento a partir da combinação de mapas e do registro de geolocalização/referenciação; fotografias do arquivo da família e do arquivo de resgate militar [p. ex., as seções “Figura pública” e “Resgate em lugares selvagens”; este último inclui a subseção “Exercícios de sobrevivência”, uma série de desenhos que recriam manobras de resgate na montanha], bem como diários pessoais [p. ex., as seções “Diários” e “Coordenadas”], permitindo introduzir visualmente o leitor/espectador à leitura/visualização de um texto que é construído como um espaço semântico e transmídia que permeia a compreensão do significado da história pessoal e artística das autoras. No início do livro, os diários de Suyai e Malen são colocados página contra página para exibir seus pontos de vista e registros escritos paralelos e complementares que relatam sua chegada a El Bolsón e sua ascensão ao morro Paleta:
8 de agosto de 2016. El Bolsón.
O morro Paleta é pequeno e se perde depressa na sombra. Atrás dele, surge o morro
Serrucho, vasto e coberto de rochas nevadas. Penso na possibilidade de encontrar o
ponto exato do impacto, como se fosse uma flecha ou um tiro.24 de dezembro de 2016. Morro Paleta.
A montanha parece mais alta do que em agosto. Tento encontrar o local com
binóculos. A área é vasta, e é difícil imaginar um golpe, uma queda.
Em termos de sua materialidade, trata-se de um livro-objeto que, ao ser desdobrado, amplia seu horizonte de significados verbo-visuais, pois marca topograficamente os marcos do território onde caiu o helicóptero. Dessa forma, a capa do livro surge como um mapa-imagem da zona de contato, cristalizando o tema central da obra que se repete nas diferentes camadas deleuzianas de textos e imagens: as consequências, na sociedade civil, da ditadura argentina do general Jorge Videla em 1976. Neste caso, trata-se de duas mulheres jovens, netas de um general da Força Aérea, cuja vida foi interrompida de forma trágica e misteriosa. Com base no registro escrito e visual de sua própria jornada, ambas escritoras (re)descobrem o território montanhoso da região patagônica que ocultou os restos da aeronave por décadas. Para elas, não só como autoras, mas também como descendentes, ativa-se um processo de pós-memória, como o chama Sarlo (2010), derivado do desejo de esclarecer o motivo da morte de seus antepassados, pois, embora não sejam vítimas como os desaparecidos pela repressão militar, seus avós morreram naquela época em circunstâncias que nunca foram esclarecidas. Deste modo, a obra aborda a reconstrução das memórias pessoais das autoras e questiona o discurso oficial disfarçado que, por sua vez, contrasta com a narrativa familiar que oculta a presença do avô como persona non grata, dada sua cumplicidade com o regime ditatorial, e ainda levando em conta sua atuação como “governador de fato da província de Santa Cruz entre abril de 1976 e agosto de 1977”.
As fotografias complementam as memórias das autoras, acentuando o vazio fantasmático que a família – principalmente os adultos – gerou em torno da figura patriarcal, o que se evidencia pela observação a presença de recortes de imagens fotográficas do general, talvez retiradas do álbum de família que sobreviveu escondido numa gaveta:
Em nossa casa, as fotos do Antônio estavam guardadas em caixas, dentro de
armários, assim como as histórias e lembranças. Na minha mente, a imagem do
meu avô era como olhar para uma fotografia embaçada, um borrão escuro, a
sombra de um homem de costas, um fantasma.
As fotos em preto e branco, um tanto pixeladas, mostram apenas as mãos do sujeito e parte de uma bandeira, transmitindo a “figura pública” que ele era. A incorporação desses fragmentos sem rosto dialoga com a imprecisão e a incerteza que norteiam a busca um tanto às cegas das autoras. Retratam a opacidade das vozes dentro da família e do círculo íntimo que levaram o avô ao ostracismo, um exercício que contribui para a agenda totalitária da época, que preenchia manchetes de jornais tais como: “Nenhuma notícia sobre a aeronave perdida”. Portanto, o que resta são restos do que foi: partes desconectadas de uma maquinaria defeituosa e incompleta.
O relato/diário pessoal verbovisual de Malen e Suyai Otaño é uma proposta de duas artistas e escritoras que compartilham com o leitor os pormenores de uma expedição às suas origens. Considerando que centenas de pessoas perderam entes queridos durante a ditadura, as autoras reconstituem um trecho significativo de sua árvore genealógica que foi cortado. Esse cerceamento pode ter tido a intenção de impedir que alguns assumissem a responsabilidade por suas ações repressivas ou de impedir que outros ignorassem esses fatos para se acomodar à ordem imposta. Com esta obra, as irmãs Otaño contribuem para o trabalho de memória, tanto do seu próprio quanto dos sobreviventes da ditadura, uma prática necessária para a resolução de processos de justiça das nações latino-americanas que enfrentaram regimes totalitários durante o século XX.
Sobre Malen Otaño e Suyai Otaño

Malen Otaño concluiu sua graduação e pós-graduação na UNC e na UFMG, Brasil, e foi selecionada para o Programa de Cinema da UTDT (2021). Participou de inúmeras exposições: Prêmio Andreani (2025); “Asterismos”, Espaço de Arte OSDE (2025); “Este é meu lugar”, CCK (2024); Prêmio Klemm (2024); Prêmio 8M, CCK (2023); Bienal do Sul, UNTREF (2023); “As ondas do desejo: Artes visuais e feminismos 2010-2020+”, CNB (2022); Arte Argentina no CCK (2019) e Salão Nacional de Artes Visuais (2018/23). Publicou o livro “Twin Otter T-87” com Suyai Otaño com Ediciones DocumentA/Escénicas em 2020.
Suyai Otaño estudou fotografia em Córdoba e no Centro para o Desenvolvimento das Artes Visuais de Havana, Cuba. Concluiu a pós-graduação em Línguas Combinadas no IUNA, em Buenos Aires. Foi selecionada para o Prêmio Itaú de Artes Visuais em 2014, o Salón-Prêmio de Artes Visuais de Córdoba em 2014, o IV Prêmio Bienal Arte x Arte de Fotografia Contemporânea de Buenos Aires em 2015 e uma Menção Honrosa na Bolsa de Fotografia Roberto Villagraz, na Espanha, em 2013. Ministrou workshops em Neuquén, Chubut, Santa Cruz, Córdoba, Buenos Aires (Argentina), Cidade do México e Oaxaca (México). Ela coordena o projeto de residência Manta.

Título original: Twin Otter T-87
Autoras: Malen Otaño y Suyai Otaño
Género: Poesía visual
Editorial: Ediciones DocumentA/Escénicas [ISBN 978-987-4445-15-5]
Año de edición: 2020
Páginas: 116
Onde encontrá-lo: https://edicionesdocumenta.com.ar/2021/01/twil-otter-t-87/

Lorena P. López Torres é professora de Língua e Comunicação e mestre em Literatura Latino-Americana Contemporânea pela Universidade Austral do Chile. Ela também possui doutorado em Filosofia – Literatura e Cultura Latino-Americanas pelo Instituto de Estudos Latino-Americanos da Freie Universität Berlin, Alemanha. É professora do Departamento de Língua e Literatura Espanhola da Faculdade de Ciências da Educação e pesquisadora do Centro de Estudos sobre Inclusão Intercultural (CEII) da Universidade Católica del Maule. Publicou livros, capítulos de livros e artigos sobre literatura latino-americana dos séculos XX e XXI; a configuração literária da Patagônia; educação patrimonial na Formação Inicial de Professores; e fotografia documental dos séculos XIX e XX.