O absurdo cotidiano em O processo, de Franz Kafka

 

Caricatura de Kafka, produzida por Malbec Lacaz – estudante do curso de História da UNIFAL-MG

Kafka parece transmitir a seus textos a inquietude quanto à literatura que dominava sua vida: ao iniciar a leitura de uma obra penetrante como O Processo, é difícil que nos interessemos por qualquer outra coisa senão literatura. Em Lição de Kafka, Modesto Carone define como kafkiana a impotência do indivíduo, que se vê controlado por forças além do que é possível enxergar. Não se trata, necessariamente, daquilo que é considerado estranho, pois, nesse caso, desconsideraríamos a base lógica dos acontecimentos; o problema, portanto, parece ser a falta de uma razão reconhecível para os desdobramentos dos fatos narrados.

A narrativa acompanha Josef K., um bancário graduado que, sem saber por quê, vê-se certo dia processado por uma autoridade invisível e inacessível. A partir daí, Kafka estrutura o romance em episódios fragmentários — e, em muitos casos, oníricos, já que as relações de causalidade são quase abolidas —, nos quais o protagonista tenta compreender e reagir ao processo, sem jamais saber de que crime é acusado. “Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.” Essa indefinição propositada é um forte recurso na obra kafkiana: tudo é muito lógico, exceto a razão dos acontecimentos.

Quando Josef K. acorda e é informado estar detido, espera-se que, ao longo da narrativa, o aparente mal-entendido seja esclarecido. No entanto, o que se descobre é que, na verdade, não somente a razão do processo é misteriosa, como também todo o funcionamento do tribunal. O narrador em terceira pessoa acompanha Josef K. de perto, mas mantém certa distância analítica, o que acentua a atmosfera de constante ambiguidade. O tribunal é composto pelas mais diversas pessoas — seria impossível esperar que Josef K. suspeitasse que crianças também compusessem o tribunal, cujo funcionamento é incompreensível —, e seus cartórios podem ser acessados por meio de lugares improváveis como, por exemplo, a porta existente no quarto de Titorelli, o pintor (onde isso seria possível senão em sonhos?). A impotência do protagonista é revelada quando, mesmo ocupando uma posição relevante, sendo de alto funcionário em uma instituição bancária, ele não consegue descobrir como controlar o andamento do processo ou o motivo pelo qual este havia sido instaurado.

O processo judicial, que deveria representar ordem e justiça, é aqui retratado como uma entidade viva, caótica e onipresente. Josef K., por sua vez, nunca se mostra um herói trágico, mas alguém que se conforma lentamente, num processo de esvaziamento subjetivo. A princípio, parecia ativamente interessado em resolver seu processo. Depois, em uma espécie de exaustão, já não parece tão disposto a lutar por uma saída.

É possível supor que a própria técnica narrativa se confunda com o processo — daí a necessidade de ela não ser clara. A história é marcada por longos períodos e parágrafos (no capítulo terceiro, Kafka inicia um parágrafo que terminará somente onze páginas depois), e o narrador parece operar com uma lógica circular e repetitiva, na qual os personagens secundários representam engrenagens de um sistema inatingível, que jamais se revela completamente.

Ao desautomatizar o olhar do leitor em relação ao mundo, Kafka narra acontecimentos absurdos, sem motivo aparente, de maneira muito natural. No final do romance, a narrativa atinge seu ponto mais radical: a execução de Josef K., feita de maneira burocrática e quase banal, revela o triunfo absoluto do absurdo sobre qualquer noção de justiça ou redenção.

A ausência de resistência do protagonista, que aceita seu destino com uma resignação inquietante, evidencia o que talvez seja a crítica mais corrosiva da obra: a interiorização da opressão como parte do próprio sujeito moderno. O processo não denuncia apenas a desumanização promovida por instituições autoritárias, mas revela como nós mesmos podemos nos tornar cúmplices do sistema que nos anula. Trata-se de uma leitura densa — para alguns, cansativa —, inquietante e, sobretudo, eternamente atual. Essa atualidade é um dos grandes motivos pelos quais se deve ler Kafka.


Título: O Processo
Autor: Franz Kafka
Tradução: Modesto Carone
Gênero: Romance
Editora: Companhia das Letras
Ano da edição: 1997
Páginas: 332
Onde encontrar: livrarias e lojas online

Camila Galbiatti é estudante do 7º período da licenciatura em Letras – Português: Literaturas da Língua Portuguesa, na UNIFAL-MG. Atualmente, trabalha no campo editorial, com revisão gramatical de textos. É interessada por literatura e teoria literária. 

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