O desconcerto Bartleby

Aí estão as mesas digitalizadoras, os scanners portáteis e os programas estatais de renda mínima para mostrar, com quase dois séculos de atraso, que o personagem de Melville não era tão desparafusado como parece ao narrador. Bartleby, protagonista da novela que tem seu nome no título, deve ter compreendido que o trabalho de escrevente não fazia qualquer sentido, mesmo quando ainda era necessário à burocracia das sociedades burguesas em fase inicial de estruturação.

Tudo indica que haver criado o estupendo Moby Dick (1851) só atrapalhou a vida do norte-americano Herman Melville, nascido em 1819 e morto em 1891. Ele havia conseguido certa notoriedade como escritor, mas o público não entendeu sua principal obra, o que o acabou fazendo desistir da literatura e terminar a vida como inspetor de alfândega em Nova York, sua cidade natal. Bartleby, o escrevente (1853) é uma novela que muitos, com razão, consideram precursora do realismo fantástico.

De fato, o próprio narrador dá mostras de compreender seu personagem como um ente meio sobrenatural devido a seu incompreensível modo de agir. Ele define aquele comportamento, a certa altura, como “aterrador”, e qualifica o escrevente Bartleby como “insólito e insondável”, adjetivos que poderíamos perfeitamente empregar para descrever figuras ficcionais e cenas de um Cortázar, um Murilo Rubião, um José J. Veiga.

Tudo começa quando esse narrador sem nome, dono de cartório, é promovido a um cargo que aumenta seus rendimentos e, em consequência, torna necessário contratar mais um funcionário para ajudar os três que já empregava. Aparece-lhe como candidato o magro Bartleby, que a princípio se revela um copista muito diligente e caprichoso. Mas tudo se complica na primeira vez que o patrão pede a Bartleby que o ajude a conferir uma cópia e este responde que “preferia não o fazer”. A resposta se torna, daí por diante, um bordão tocado todas as vezes que é solicitado a Bartleby qualquer serviço além da simples cópia de documentos.

Sentindo-se ultrajado em sua condição de proprietário, o narrador inicialmente não consegue repreender Bartleby, mesmo tendo a recusa do empregado – feita sem insolência, com toda a serenidade possível – o efeito de revoltar dois de seus colegas e levar o terceiro a classificar o novato como doido. A situação vai evoluir até o ponto em que alguma ruptura se anuncia inevitável, mas o narrador sempre encontra, no seu íntimo, um motivo para adiar a necessária demissão de Bartleby.

Em certa passagem, ele descobre que o excêntrico escrevente não almoça, alimenta-se apenas de biscoitos de gengibre trazidos pelo contínuo do escritório. É aí que começa a ganhar terreno sua solidariedade por Bartleby, a qual chegará ao ponto de uma “pungente e irresistível melancolia” quando constata que o outro dorme no cartório, não tem um lar. A piedade pela solidão do outro é maior do que a sentida por sua miséria (Bartleby recebia muito pouco por seu trabalho e praticamente economizava tudo), e de repente o narrador se vê insensivelmente adotando em suas falas o “preferia não” do empregado. Aliás, a expressão também contamina outro de seus copistas, apelidado Peru em virtude de sua constituição excessivamente sanguínea.

Essa curiosa problemática, aparentemente tão fácil de resolver, complica-se um pouco mais quando Bartleby também abandona o trabalho de copista, passando o dia todo ao lado de uma janela. Não haverá ponderações do patrão que o demovam, ele simplesmente responderá todas as vezes que “preferia não” trabalhar. Nesse ponto o narrador, que já havia passado da revolta à perplexidade e depois ao conformismo, começa a ver a situação de Bartleby em termos religiosos:

Era aos poucos convencido de que todos os problemas que enfrentara com o escrevente
tinham seu fundo de eternidade e predestinação, tendo Bartleby sido instalado em minha
vida graças a algum misterioso desígnio da mais que sábia Providência, da qual não
competia a um mero mortal como eu perscrutar quaisquer razões. Sim, Bartleby, fique aí,
atrás do seu biombo, pensei comigo; abdico de persegui-lo; você é tão silencioso e
inofensivo quanto estas velhas cadeiras; em suma, nunca me sinto tão protegido em minha
privacidade quanto quando sei que você está aí. E finalmente: eu vejo, eu sinto; penetro
e consulto o sentido predestinado de minha vida. Sou feliz.

É por esse tom que alguns enxergam na novela uma antecipação das narrativas de Kafka, onde tudo ocorre de modo escrupulosamente realista, mas falta ao narrador e aos personagens saber a razão pela qual se dão os fatos. Essa lacuna de sentido é tudo no realismo fantástico, que prescinde de monstros e eventos sobrenaturais para soar sempre muito estranho.

Mas a estranheza de Bartleby vai aumentando, mesmo que sua expressão seja sempre a calma e respeitosa frase “Prefiro não o fazer”, ou alguma discreta variação. Isso leva o narrador a mudar seu estado de espírito, passando a considerar o escrevente um “parasita demoníaco”, situação que o obriga a mudar o endereço de seu escritório; mas, ainda assim, continua sendo incomodado pela presença fantasmagórica do ex-empregado, que não aceita a demissão e continua, por assim dizer, assombrando o antigo endereço do escritório com sua presença ao mesmo tempo calada e persistente.

Nas proximidades do desfecho, o narrador vai visitar Bartleby na prisão, à qual havia sido recolhido como desocupado, e constata que nada havia mudado na atitude do outro. Ele insistia em ser coerente com sua desrazão. Bartleby, o escrevente é daqueles raros livros que não perdem uma fração sequer de seu encanto na releitura.

Título: Bartleby, o escrevente
Autor: Herman Melville
Tradução: Tomaz Tadeu
Gênero: Literatura Estrangeira
Ano da edição: 2015
ISBN: 9788582175217
Selo: Autêntica Editora


Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

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