
Ao Sul do berço da humanidade
O Anjo invasor me deu cor, mas cor não tenho
Eu tenho raça e a cada farsa, a cada horror
O meu empenho, meu braço, meu valor
Se ergueu contra o monstro da cobiça
Caveirão da injustiça, filho da segregação
Liberto permanece o pensamento
Ele foi meu alento o corpo foi prisão
O nosso herói Mandela é […]Enredo e samba-enredo “Preto e branco a cores”
Unidos do Porto da Pedra
Carnaval carioca, 2007
Em 2007, no carnaval carioca, a escola de samba Unidos do Porto da Pedra cantou uma História de resistência contra a segregação racial e o apartheid, e a luta por direitos civis e cidadania de negros e negras na África do Sul, apresentando aos(as) amantes do samba, a sociedade brasileira e ao mundo a relevância da luta antirracista.
Conhecer essa História é compreender o significado da data “21 de março – Dia Internacional Contra a Discriminação Racial”, instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU), por meio da “Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial” (1963).
A história do povo negro sul-africano foi marcada pela presença e exploração de europeus, desde a chegada dos holandeses – os boêres no século XVII às imposições dos britânicos no século XIX. Os descendentes dos boêres, os africânderes não aceitavam se submeter à prática de leis britânicas.
Após a superação dos desentendimentos entre africânderes e britânicos, devido aos interesses políticos, a reconciliação entre ambos levou à criação em 1910 de um Estado unificado, a União da África do Sul, reiterou-se a exclusão do povo negro, inviabilizando a participação deste no processo político. O racismo atingiu os povos não brancos, como africanos, mestiços e indianos, destes a grande maioria era negra.
O racismo praticado pelos conquistadores e seus descendentes na África do Sul favoreceu a instauração de uma política segregacionista, que ampliou as desigualdades sociais, econômicas, políticas, demográficas e culturais que atingiram a maioria do povo negro, relegando-o a exclusão e a violência policial.
No século XX, após a conquista da Independência em 1910, com a criação do Partido Nacional em 1938 e a chegada deste ao domínio da esfera do Estado, oficializou-se a política de segregação racial, ou seja, em 1948 o apartheid se tornou um sistema político, com legislação segregacionista, escolas distintas para brancos e negros, bairros destinados aos negros, os bantustões, diferenciando-se dos bairros onde vivia a população branca, a população negra devia circular com documentos, tais como a carteira de passe.
As Leis do Passe procuraram assegurar o domínio da minoria branca sobre o povo negro sul-africano, porque os negros e as negras só poderiam se movimentar se tivessem um passaporte de identificação. O povo negro necessitava deste passaporte para andar pelas ruas das cidades, conseguir um emprego, viajar e/ou, sair às ruas após o toque de recolher. Se alguma pessoa branca e/ou policial exigisse de alguma pessoa negra a apresentação do passaporte – a carteira de passe, e este não apresentasse, podia ser preso e/ou perder o emprego.
O povo negro sul-africano rebelou-se contra a legislação segregacionista, o apartheid. Nelson Mandela e outros ativistas do Congresso Nacional Africano (CNA) lançaram um manifesto, a “Carta da liberdade” (1955), fazendo o enfrentamento à discriminação racial instituída como política do governo de minoria branca, e em defesa de uma África do Sul multirracial, para que a população negra pudesse exercer sua cidadania na perspectiva dos Direitos Humanos. Essa carta se tornou um documento proibido durante a Guerra Fria e o governo de minoria branca na África do Sul.
Por conta dessa luta antirracista, Nelson Mandela e outros ativistas do CNA foram presos e condenados. Em 11 de junho de 1964, Mandela foi condenado à prisão perpétua, permanecendo preso por 27 anos.
Enquanto Mandela e outros ativistas negros do CNA permaneceram presos, Winnie Mandela (segunda esposa), outros ativistas negros como Steve Biko, estudantes, trabalhadores e trabalhadoras sul-africanos seguiram na luta antirracista contra o apartheid.
Em 21 de março de 1960, em Shaperville, em Joanesburg, na África do Sul, ocorreu um protesto. Os(as) ativistas negros(as) realizaram uma mobilização nacional, questionando o uso da carteira de passaporte interno no país. Essa manifestação foi tratada como questão de polícia, ocorrendo uma intensa repressão policial e práticas de violência de representantes do Estado, o que resultou em mais de 200 pessoas feridas e mais de 60 pessoas mortas. Posteriormente, o povo negro sul-africano organizou outros protestos para a derrubada daquele governo autoritário como o Levante em Soweto, em 1976, entre outros.
No século XXI, no Brasil, essa História da África do Sul, de luta do povo negro contra a segregação racial, ou seja, o apartheid foi cantada e ensinada pelo povo negro e do samba, ressaltando a importância do combate a discriminação racial.
No carnaval carioca, no enredo, no samba-enredo “Preto e branco a cores” (2007) e na Arte carnavalesca da escola de samba Unidos do Porto da Pedra, o povo negro e do samba cantou e ensinou o protagonismo negro na luta contra a discriminação racial na África do Sul, expondo que os “colonizadores” e seus descendentes no contexto de colonização e pós-Independência exploraram as terras, as riquezas e o povo sul-africano.
Na alegoria, ou seja, no carro alegórico “Anjo colonizador racista” se fez a representação da História da luta do povo sul-africano. Os “colonizadores” e seus descendentes foram representados como um “anjo” com dentes de “vampiro”, coroa e espada. Enquanto que o povo negro foi representado por um jovem negro tombado, assassinado, porque ousou lutar contra a discriminação, a segregação racial, enfim o apartheid (Silva, 2019, p. 201).
O povo negro sul-africano, crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos se tornaram alvos da repressão na medida em que questionavam à segregação racial, o apartheid. Negros e negras tombaram, foram assassinados por agentes de segurança do Estado do governo de minoria branca, porque ousaram lutar pela liberdade, opondo-se a discriminação racial.
A História do povo negro na África do Sul é de resistência e luta. O fim gradual do regime político segregacionista ocorreu por conta dos vários protestos negros ao longo do século XX, e principalmente após a II Guerra Mundial, quando surgiu a Organização das Nações Unidas (ONU), que diante das inúmeras denúncias de violação de Direitos Humanos naquele país, impôs boicotes econômicos ao governo sul-africano, pressionando-o a pôr fim ao apartheid.
O povo negro conquistou sua liberdade política na década de 1990. Em 11 de fevereiro de 1990, após 27 anos de prisão, Nelson Mandela foi liberto. Essa política do governo sul-africano acenava para o fim do apartheid. Em 1994, ocorreu a primeira eleição multirracial na África do Sul, na qual todas as pessoas puderam votar. O povo negro conquistou direitos civis, pois lutou e conquistou o direito de participar da política institucional. Porém, o povo negro sul-africano ainda segue na luta por políticas públicas para a promoção da igualdade social entre brancos e negros.
Enfim, o dia “21 de março – Dia Internacional Contra a Discriminação Racial” faz alusão ao massacre ocorrido em Shaperville em (1960) na África do Sul, quando o povo sul-africano protestou contra a legislação segregacionista como a Lei do Passe, foi fortemente reprimido, resultando em pessoas feridas e mortas. Na contemporaneidade, essa História não pode ser esquecida, a fim de entendermos que o povo negro em África e na diáspora africana, ou seja, em outras regiões do mundo, segue na luta antirracista contra a discriminação racial, exigindo políticas públicas que promovam a equidade social e racial, ou seja, a plena cidadania e respeito aos Direitos Humanos na democracia.
SILVA, Ana Lúcia da. Ensino de História da África e cultura afro-brasileira: Estudos Culturais e sambas-enredo. Curitiba: Editora Appris, 2019.
SILVA, Ana Lúcia da. Pedagogias culturais nos sambas-enredo do carnaval carioca (2000-2013): a história da África e a cultura afro-brasileira. 264 f. Dissertação (Doutorado em Educação). Universidade Estadual de Maringá. Orientadora: Dra. Teresa Kazuko Teruya. Maringá, 2018.
DAVIS, Angela. Quando uma mulher é uma rocha: reflexões sobre a autobiografia de Winnie Mandela. In: Mulheres, raça e política. Trad. Heci Regina Candini. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 89 – 93.
VAIL, John . Winnie e Nelson Mandela. Trad. José Carlos Barbosa dos Santos. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Coleção Os Grandes Líderes)
BENJAMIN, Anne (org.). Winnie Mandela: uma autobiografia. Trad. Luiza Ribeiro. São Paulo: Círculo do Livro, 1984.

Ana Lúcia da Silva é professora do Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL) da UNIFAL-MG, atuando na área “Educação e relações étnico-raciais”. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade, trabalha com a linha de pesquisa: “Educação e sociedade: sujeitos, ideias e políticas”. Coordena o projeto de extensão “Consciência negra o ano todo, de janeiro a janeiro”. É doutora em História e doutora em Educação, mestra e graduada em História, e integrante dos grupos de pesquisa do CNPq: “Educação, mídia e Estudos Culturais” – Universidade Estadual de Maringá (UEM), do “Grupo de Pesquisa e Estudo Feministas Lélia Gonzalez” – Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e “Brasil Contemporâneo”, também da UEM.
Política de Uso
As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas. A reprodução de matérias e imagens é livre mediante a citação do Jornal UNIFAL-MG e do autor.