Dizem os últimos versos da ótima antologia poética de Eustáquio Gorgone de Oliveira: “quem fica insepulto/ é aquele que espera pelos leitores”. Nesse sentido, o autor ficou um pouco mais “sepultado” com essa reunião, organizada por Edimilson de Almeida Pereira e Prisca Agustoni, de poemas tirados dos seus 22 livros publicados, o primeiro de 1974, e de três volumes ainda inéditos. A edição da obra de Eustáquio, mesmo não sendo ainda a sonhável poesia completa, é um grande serviço prestado à literatura brasileira; nascido em Caxambu no ano de 1949 e morto em 2011, ele foi um de nossos poetas mais originais da virada do milênio.
Essa originalidade consistiu essencialmente em ser fiel às próprias obsessões. É o que costuma, por sinal, ocorrer com os escritores realmente importantes. Nessa linha, Eustáquio Gorgone criou, em centenas de poemas curtos, uma mitologia pessoal em torno de seu mundo particular situado entre o Circuito das Águas mineiro e as Terras Altas da Mantiqueira, na divisa de Minas com o Rio de Janeiro. Nomes de cidades dessas microrregiões, como Soledade de Minas, Baependi e, principalmente, Pouso Alto, são frequentes em sua poesia, mas não significam exatamente um lastro realista: servem para designar uma região imaginária em que se amalgamam a memória e imagens das mais delirantes, as quais desnorteiam a percepção do leitor por situar-se num tempo fantástico e numa geografia movente onde bois podem voar e marujos podem navegar através das montanhas.
Seria uma solução fácil – e anacrônica – chamar tal poesia de surrealista, e, ao não fazê-lo, andaram bem os organizadores do volume. Eles preferem associar Eustáquio ao Barroco e ao Expressionismo, mas ressalvando sempre que sua poética não se deixa capturar por nenhuma filiação exclusiva ou irrevogável. Afinal, numa obra produzida ao longo de quase quatro décadas, a inquietação parece ter sido a única constante, e, se o poeta não procura esconder, também, a dívida com o Concretismo, o ritmo de seus versos atesta, sobre todas as outras camadas, um aprendizado paciente na alquimia da poética livre do Modernismo, em que livre nunca significou o abandono das possibilidades musicais do verso elaboradas ao longo de séculos pela tradição dos grandes poetas do Ocidente.
Poesia difícil, mas cheia de encantos, a do caxambuense parece construída com ruínas e, de umas acoplagens improbabilíssimas, quase sempre muito estranhas, extrai seu brilho imagético único, que faz contraponto ao dito encanto rítmico. Para seus poemas, não há propriamente interpretações, mas intrigadas e intrigantes hipóteses semânticas; por isso, talvez seja permissível a suposição fantasiosa de que certo dia, na solidão de seu ateliê – Eustáquio também se revela um grande conhecedor de técnicas das artes plásticas –, o poeta tenha tido o estalo: faltava à poesia mineira um Aleijadinho. E, daí por diante, tenha dedicado uma vida à criação dessa poética na qual se associam as dores da alma torturada pela culpa cristã a uma sensualidade impossível de recalcar. Eustáquio personifica objetos e projeta neles essa sensualidade e essas dores; um dos motivos centrais de sua poesia é a erotização das coisas, erotização sempre meio masoquista, embora frequentemente escarninha. Sua imaginação para criar figuras insólitas é poderosa como poucas, resultando o tempo todo em versos deslumbrantes como “querubins com olhos de chuchu”. Ou de feitio semelhante a estes:
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Sim, a igreja é uma fêmea cheia de anjos,
Caiada, estufada de réquiens,
Alimentando a solidão dos homens
Pela placenta colorida das vidraças.
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Era o poeta católico? Sim e não, ambas as respostas bem enfáticas. Era católico por formação, tendo estudado em colégio de padres e sido educado num ambiente tipicamente mineiro e interiorano na metade do século XX. Mas expressa sempre sua torturada dissidência em relação à ortodoxia religiosa, mesmo porque a história do catolicismo no século XX é a história de um constante refazer-se na tentativa de atingir o aggiornamento tão necessário quanto impossível. Daí o sentimento religioso do poeta refratar-se numa catarse que consiste, antes de mais nada, na profanação erótica do sagrado. Elaborando simbolicamente sua própria Queda, dela se penitenciando o tempo todo, esse Baudelaire sul-mineiro se vinga da saudade do que não houve por meio da encenação de uma heresia que talvez seja seu castigo autoinfligido e sua tentativa de redenção.
Estes versos, que, como os anteriormente citados, fazem parte da sequência de poemas intitulada “Soledade de Minas”, exemplificam um pouco mais extensamente o estilo do poeta:
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Sob teus pés corre um rio lodoso,
Cheio de almas de potros e cabras.
À esquerda, as velhas casas, com cílios de cornija,
Recebem a visita do padre. As crianças,
Debruçadas no parapeito das janelas,
São pássaros que descansam da revoada.
Longe, entre montanhas, numa pia de luz,
O sol abaixa sua cabeça e antes de dormir
Ouve a Ave-maria franzina e triste.
Quando a noite chega, envolta em boleros,
Cava com seus dedos de ferro
Pequenos buracos nas costas dos homens,
Iguais aos que os cães fazem na areia.
Assim, a cidade jaz no ataúde do sonho,
Coberta de lírios miúdos que lembram
O pulgão ardente dos primeiros amores.
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E, então, Minas Gerais será uma “musselina cristã sobre os bordéis” ou, em remissões menos diretas, muitas outras coisas traduzidas em imagens desconcertantes. Isso que não impede que, em alguns poemas, transpareçam de modo inequívoco os elementos autobiográficos; é o caso dos três que formam a sequência “O bancário”, em que o poeta sintetiza sua experiência de funcionário público (ele trabalhou por muitos anos numa agência da Previdência Social). Algo de mais convencional ocasionalmente escapa, a denunciar certo lastro romântico, mas aquele romantismo requentado de quem imagina ser a poesia apenas o lugar da expressão narcisista e choramingas. O óbvio não tem lugar na poética de Eustáquio.
Nesses domínios mais, por assim dizer, objetivos, o poeta faz também a sua denúncia política: não esquecer que ele começou a escrever no auge de uma ditadura. Mas a dicção de Eustáquio está sempre a fazer inflexões, muda o tempo todo de lugar – para o que também servem os nomes dos lugares onde situa seus poemas, às vezes respingados de ortografia arcaica, como ao nomear “Baependy”. Muda de lugar, mas não abandona o “baixo calão da cidade”, dessas “villas amasiadas com a morte” nas quais o tempo se curva à primazia da matéria – as coisas obrigam-no a estar sempre onde elas estão, pois o importante é que elas sejam os corpos físicos nos quais a mente do poeta possa moldar as peças de seu jogo simbólico, descrente e desesperançado daquele outro mundo que as pessoas presas ao chão do cotidiano imaginam conhecer, ignorantes de tudo, até de que “só a dor cura a si mesma”.
Nada é capaz de dizer, da poesia eustaquiana, o que somente ela mesma consegue expressar. Por isso, o melhor modo de encerrar este comentário ligeiro é transcrevendo o poema intitulado, bem significativamente, “Inventário”:
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depois de minuciosa busca
encontraram na oficina do ganso:
um furador de vaivém,
duas grosas inglesas,
uma escova de cabo largo
e um serrote com dentes de flores
usado para dividir o mundo
em partes desiguais.
Coube aos seus herdeiros
guardar as peças na moela
até o fim do inventário
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Título: Antologia poética: Eustáquio Gorgone de Oliveira: 1974 – 2010
Organização e apresentação: Edimilson de Almeida Pereira e Prisca Agustoni
Gênero: Poemas
Ano da edição: 2022
ISBN: 978-65-5361-086-6
Selo: Kotter Editorial