Infelizmente não são – é a média da Humanidade – todos, mas alguns desses jovens que nos chegam todo ano às braçadas, às vezes mal saídos da infância e atarantados com uma liberdade para a qual ninguém os preparou, alguns deles já descobriram coisas que ainda escapam a quem quase poderia ser seu avô e, pior, tem-se tornado cada vez mais descrente no poder da novidade. Por isso, antes de mais nada: obrigado, Brendha, pela indicação (involuntária) dessa leitura.
Opisanie świata (assim mesmo, com acento no s) é um título para lá de estranho porque está em polonês. O livro foi publicado em 2013 pela escritora gaúcha Veronica Stigger, numa daquelas edições primorosas da falecida editora Cosac Naify, e passa perto de ser um romance. Sua tônica está mais na experimentação da forma narrativa do que na própria tarefa de contar uma história, mas esta se revela, afinal, o equivalente perfeito de seu modo de apresentação. Descende de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) – atenção, isto não é uma comparação! – e das desconcertantes montagens oswaldianas. Seu ancestral brasileiro mais próximo é O mez da gripe (1981), do paranaense Valêncio Xavier.
Ao mesmo tempo, é um objeto claro e intrigante. Pela clareza, responde um estilo preciso (e corretíssimo) filiado à tradição realista; pela intriga, as elipses narrativas cujo preenchimento fica a cargo do leitor. Faz parte das intenções da autora, tudo indica, que o sentido seja incompleto, pois compreender tudo equivaleria a cumprir novamente todo o percurso criativo.
Opisanie świata é uma composição de textos de naturezas variadas. O título significa “Descrição do mundo”, como na tradução polonesa do livro de Marco Polo, mercador veneziano do século XIII, Il milione, curiosamente ausente da lista de “Deveres” que relaciona as muitas e diversas fontes da invenção stiggeriana. Nessa lista, destacam-se logo as referências ao poeta Raul Bopp, gaúcho como a autora e cujo Cobra Norato (1931) é uma das realizações mais importantes do Modernismo, especialmente do Movimento Antropófago, liderado por Oswald de Andrade e do qual Bopp fez parte.
O encantamento da ficcionista por Bopp deve mesmo ter sido o estopim de seu experimento. Descrito numa das primeiras páginas como tipo meio ridículo e muito entrão, o poeta será o companheiro de Opalka, polonês que figura no outro polo da narrativa, numa viagem de trem na Europa e depois em outra de navio, esta de Varsóvia ao Amazonas, onde o europeu desembarcaria para conhecer seu filho, cuja existência até então havia ignorado e que lhe havia escrito duas cartas, nas quais informava estar muito doente e ansioso por conhecer o pai. Ao longo do relato, porém, a figura de Bopp crescerá continuamente, e trechos “transcritos” de um diário do próprio Opalka terminarão por caracterizar o poeta – que viajou meio mundo – como personagem fascinante e digno de tornar-se lenda: “Só lamento que ele próprio não tenha querido até agora escrever seu romance de aventuras”, diz Opalka, e podemos apostar que quem está falando aí é a própria autora.
Uma epígrafe tirada do Quincas Borba (1891) apresenta importante pista para o procedimento intertextual de Veronica Stigger: a personagem machadiana D. Fernanda refere-se à capital polonesa como um lugar qualquer na Europa, opinião confirmada por uma segunda epígrafe, desta vez de Michel Foucault, que menciona o fato de Ubu Roi (1896), peça teatral de Alfred Jarry, passar-se na Polônia, “o que quer dizer lugar nenhum”. Tudo indica que autora partiu daqueles “Deveres” mencionados no final do livro para criar o enredo, então uma peça de ficção apoiada em elementos e referências reais. Entre estas, realmente existiu um Roman Opalka, pintor cujas telas consistiram num trabalho radicalmente conceitual a partir do desenho de números. Também esse elemento terá contribuído para Veronica Stigger propor-se a construção de uma estrutura em princípio indeterminada, mas que ganha sentido à medida que vai existindo.
Cerca de um terço ou mais de Opisanie świata consiste na viagem transatlântica, que, não por acaso, lembra os relatos desse tipo feitos por Oswald de Andrade em seus dois principais romances, tanto que, estando o navio de Bopp e Opalka próximo de entrar na foz do Amazonas, cruza com o El Durazno, a mítica embarcação-suruba mencionada no final de Serafim Ponte Grande (1933). As últimas páginas se passam em Manaus, onde Opalka já não consegue alcançar seu filho Natanael com vida. Num caderno que lhe havia sido dado por Bopp, o polonês começa a escrever um romance, justamente intitulado Opisanie świata e dedicado ao filho que não pudera conhecer senão já morto.
Nenhuma síntese pode recuperar a impressão de beleza desse livro. Com seu percurso narrativo aparentemente errático, mas de fato certeiro, com suas reproduções de anúncios turísticos e propagandas de canivete e cosmético para os seios, todos recortados de jornais da época (por sinal, a história se passa naquele ano terrível em que Hitler invadiu a Polônia), ele se constitui num objeto muito original, embora sua novidade seja o arranjo obtido pela autora a partir de ignições textuais alheias que deflagraram as suas próprias: não há rigorosamente nada novo nas partes, mas o todo surpreende incrivelmente. Se ainda houver história literária depois do atual assalto bárbaro à cultura brasileira, Opisanie świata está destinado a ser uma obra incontornável para quem queira conhecer nossa ficção deste início de milênio.
Título: Opisanie świata
Autor: Veronica Stigger
Gênero: Romance
Ano da edição: 2013
ISBN-10: 8540504626
ISBN-13: 978-8540504622
Selo: Cosac & Naify