Em A água é uma máquina do tempo (2022), Aline Motta conduz a narrativa como quem acompanha o movimento sinuoso de um rio que nunca cessa. As fronteiras entre passado e presente se rompem, e mães e filhas trocam de lugar num tempo que gira sobre si mesmo. A memória, narrada a partir de um ciclo espiral, assemelha-se ao caminho de Oxumarê, orixá regente da continuidade, da renovação e da transformação, que assume duas formas: serpente e arco-íris, representando os ciclos da vida, como o movimento constante e a conexão entre o céu e a terra, a riqueza e a prosperidade. Assim, atravessa o céu e a terra, unindo planos e temporalidades. Do mesmo modo como Oxumarê faz circular as águas entre dimensões, Aline faz circular as histórias silenciadas de sua linhagem, transformando fragmentos do diário de sua mãe em presença viva. A água deixa de ser símbolo distante para tornar-se força motriz: é ela que conduz, conecta e devolve à superfície aquilo que tentaram afundar no esquecimento. A escrita de Aline serpenteia como Oxumarê, convocando ancestrais e instaurando outra percepção de tempo a partir da visão negra atravessada pela colonização e da evocação ancestral do axé.
A obra poética de Aline Motta é um suspiro pessoal e ensaístico sobre sua vida enquanto mulher preta, filha, neta, bisneta e tataraneta de outras mulheres negras. Em sua contextualização, Aline expõe como sua linhagem foi afetada pela colonização: estupro, roubo da identidade, aprisionamento matrimonial e perda da autonomia feminina marcam o ciclo espiralar que circunda sua existência. Seu primeiro respiro é a morte da tataravó, que deixa um rastro de leite e sangue e instaura o serpentear da família.
A obra dialoga de modo intertextual com o conto Pai contra mãe, de Machado de Assis, publicado no livro Relíquias de Casa Velha (1906). No conto, Machado expõe a prática da Roda dos Enjeitados ou Roda dos Expostos, que consistia num mecanismo utilizado para abandonar recém-nascidos que ficavam ao cuidado de instituições de caridade, e que Aline denomina de Roda da Madrugada, onde recém-nascidos eram abandonados em conventos, rompendo a continuidade identitária. Enquanto Machado apresenta a Roda como tática de sobrevivência a partir da narrativa de uma ex-escravizada, Aline amplia a visão para uma perspectiva feminina, dialogando com o peso imposto à mulher e o exercício da maternidade. Machado conclui, proferindo: “Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração”. Aline, por sua vez, adiciona: “Nem todas as mães vingam”.
A frase de Machado de Assis “Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração” é uma observação sobre a desumanização e as duras condições da escravidão e da pobreza no Brasil da época. A expressão “bater-lhe o coração” se refere à dor emocional e ao sofrimento, como o do personagem-narrador, ao se deparar com o destino cruel e precário das crianças que, por causa da escravidão e da falta de oportunidades, não conseguiam “vingar” ou prosperar na vida. Já frase da Aline “Nem todas as mães vingam”, diz a autora a respeito de Ambrosina, tataravó que teve sete filhos, morreu aos 37 anos, de tuberculose segundo a certidão de óbito, que, parafraseando o conto de Machado em que o caçador de escravizados, tendo presenciado o aborto da mulher grávida capturada, afirma que “Nem todas as crianças vingam”. E nem todas as filhas vingam, como a tia-bisavó Michaela Iracema depois de ser raptada e violentada aos treze anos, em 1891, e em cujo ventre nenhum feto vingaria desde então:
Mas o que deixou Ambrosina mesmo sem ar foi saber que a única solução
para aquela desonra era lutar para que a sua filha se casasse com quem a
tinha violentado. Entre o melhor e o certo, a escolha era cumprir a lei.
Deste modo, a narrativa cíclica permite a reflexão sobre maternidade e subscrições femininas da época da tataravó: “Será que a narrativa de Machado de Assis fará sentido no futuro? ”. Como resposta, a autora aponta que uma avenida no Leblon leva o nome do juiz que decretou o casamento de sua tataravó, vítima do crime de defloramento, perdoado pelo matrimônio imposto. O livro apresenta versos livres e rítmicos, articulados com imagens de lembranças pessoais, como páginas do diário da mãe, fotografias e notícias da época, incluindo a censura ao seriado Raízes, cuja proibição visava evitar ameaçar o equilíbrio racial brasileiro. Com o impacto da lembrança da notícia, Aline recorda como racismo era assunto proibido em sua casa, implicando no apagamento da sua identidade:
Discutir racismo na minha família era como entrar naquela parte do mar
em que não dá mais pé. Se fosse chamado pelo nome, o equilíbrio
familiar se quebraria, e a corrente nos levaria à deriva.
Na beira, não precisávamos passar a arrebentação. Fazíamos piada
daquilo tudo. Até que nada mais tinha graça. Acho que não foi bem
assim, você está imaginando coisas. Por que cismou com isso agora?
A poeta ainda critica o ciclo racial perpetuado pela colonialidade, que subjuga pessoas negras, especialmente mulheres, que de acordo com a autora necessitam de desobediência:
Eu só poderia me tornar o que sou sendo desobediente, em contínua
ruptura. Mais velha, pude fugir de fato da intimidade do convívio
procurando um exílio. Em momentos mais solitários do que havia
desejado, revisitar aqueles cacos se tornou uma maneira de pedir
desculpas, monumentos que atestavam minha vergonha de filha
malcriada. Devo a você a ansiedade da perfeição, não há conserto quando
se falta uma peça.
Em meio a essas imagens, Aline insere repetidas vezes o recorte fotográfico com a inscrição “não corte os negativos”, símbolo de que em uma narrativa cíclica que busca compreender o presente e projetar a evolução, não se pode apagar o passado, pois dele se constitui o corpo e a memória.
Essas mulheres cumprem a função emotiva de elo familiar, evidenciada na indiferença do pai diante da morte da mãe e na segregação entre irmãos após o funeral. A filha que vira ancestral da mãe se assume como desobediente, rompendo o ciclo contínuo que serpenteia a família. Perpassada por fissuras das lembranças e leituras do diário materno, Aline reconhece que sua força vital está amparada no axé de sua mãe: “Não estou mais viva, agora só posso protegê-la em pensamento”, conforme diz a autora ao refletir sobre a perda de sua mãe.
Ao refletir sobre a consciência da morte, Aline escreve “Se você estiver consciente durante a morte, não sobreviverá”, propondo que a força de uma alma jamais morre, pois vive pela memória dos familiares. A memória é veículo de ancestralidade e rastreia a evolução do ser que se dispõe a atuar como diário dos que já se foram. O corpo é um gênero textual marcado pelo texto não verbal da memória, narrado pela identidade construída discursivamente, gramaticalizado pela ancestralidade e morfologicamente composto pelo radical da linhagem. Pensar a obra poética de Aline, quando afirma “Eu faço do meu corpo um altar, nele um morto pode dançar”, é cultuar a espiralidade de Oxumarê como regente do tempo que circunda a existência do ser. O orixá nasce brilhando e rastejando para assumir o elo entre existência e memória. A cobra que morde a própria cauda designa o curso cíclico da vida, enquanto ao assumir a forma de arco-íris une o corpo à lembrança que o guia.
A escrita de Aline Motta transborda como gesto de resistência e reescrita da história. Ao conectar o íntimo e o ancestral, a artista questiona a linearidade colonial do tempo e da linguagem, deslocando o olhar para uma perspectiva negra e feminina:
Se eu soubesse teria soprado um par de pulmões
no lugar do seu útero
e esse par extra você o teria doado em vida
para Ambrosina
que poderia assim respirar o vento da eternidade
que não termina no dia seguinte
Inverter a lógica dos embriões
A filha que vira uma ancestral da mãe
memória e veículo
A água é uma máquina do tempo
Sua poética faz da água um marcador temporal de denúncia, onde o corpo se torna território e o passado, matéria viva. A água é uma máquina do tempo é, assim, uma leitura necessária para compreender como a arte pode insurgir contra o apagamento e fazer do arquivo um corpo em movimento. Numa entrevista fornecida ao site da revista ZUM, do Instituto Moreira Salles dedicada ao universo fotográfico, a autora, falando sobre sua obra e as mulheres de sua família, assim como o processo de lidar com a escravidão, ela comentou:
O que gostaria que a minha obra reverberasse de alguma forma é que todos
estão implicados, que todos deveriam fazer parte da luta antirracista, não
apenas os negros. O que descobri sobre mim é que para trabalhar questões
coletivas eu precisei fazer um mergulho muito pessoal e íntimo dentro de
mim mesma. Ainda que sentisse medo, deveria continuar. Ainda que não
soubesse nem como começar, eu não poderia me dar ao luxo de desistir.
Apesar de a arte ter um alcance restrito, ainda é uma forma de resistir e
dizer que não nos esquecemos […] existem muitas formas de enfrentamento
destas questões, a que eu encontrei foi através do cinema, das artes visuais,
da literatura. Então, pessoalmente falar desses assuntos é uma maneira de
honrar a memória dos que vieram antes de mim. Eles deram a vida para
que eu pudesse estar hoje com condições psíquicas e financeiras para
poder falar sobre esse legado. Espero que não seja isso visto como uma
“moda” ou “pauta identitária”, pois é algo que diz respeito a nossa
própria vida, como lidamos com o estar no mundo e com o que nos conecta em níveis muito profundos
Sobre Aline Motta
Aline Motta nasceu em Niterói (RJ), em 1974, e mora em São Paulo. Combina diferentes técnicas e práticas artísticas em seu trabalho, como fotografia, vídeo, instalação, performance e colagem. De modo crítico, suas obras reconfiguram memórias, em especial as afro-atlânticas, e constroem novas narrativas que invocam uma ideia não linear do tempo. Foi contemplada com o Programa Rumos Itaú Cultural 2015/2016, com a Bolsa ZUM de Fotografia do Instituto Moreira Salles 2018, com 7º Prêmio Indústria Nacional Marcantonio Vilaça 2019 e com o Prêmio PIPA 2024. Recentemente participou de exposições importantes como “Histórias Feministas, artistas depois de 2000” – MASP, “Histórias Afro-Atlânticas” – MASP/Tomie Ohtake, “Cuando cambia el mundo” – Centro Cultural Kirchner, Buenos Aires, Argentina e “Pensar tudo de nuevo” – Les Rencontres de la Photographie, Arles, França. Abriu sua exposição individual “Aline Motta: memória, viagem e água” no MAR/Museu de Arte do Rio em 2020. Em 2021 exibiu seus trabalhos em vídeo no New Museum (NY) no programa “Screen Series”. Em 2022, lançou seu primeiro livro “A água é uma máquina do tempo” pelas editoras Fósforo e Luna Parque Edições (finalista do prêmio literário Jabuti), abriu exposição individual no átrio do SESC Belenzinho e na sala de vídeo do MASP.

Título: A Água é uma máquina do tempo
Nome do autor (a): Aline Motta
Gênero: Memória, autobiografia, poesia, ensaio híbrido que combina diversas linguagens
Editora: Fósforo
Ano: 2020
Páginas: 144 (impressas)
Onde encontrar: disponível em formato físico e eletrônico em livrarias

Brian Henrique Lourenço Ferraz é licenciando do último período do curso de Letras – Português e Literaturas da Língua Portuguesa da UNIFAL-MG. Integra Subprojeto de Letras Interdisciplinar, vinculado ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID/CAPES 2024-2026) e o grupo de extensão Literatura além do livro, voltado à pesquisa e às práticas de mediação literária.
* Esta resenha foi selecionada em chamada para publicação nesta coluna ‘Literatura pelas Bordas’ durante o Mês da Consciência Negra. O texto passou pela supervisão da curadoria, presidida pelo professor Ítalo Oscar Riccardi León, do curso de Letras.















