Pesquisa revela apagamento da memória negra em Cabo Verde-MG e propõe resgate histórico na cidade

Dissertação desenvolvida no mestrado em História Ibérica da UNIFAL-MG identificou a destruição de espaços sagrados no município sul-mineiro
Fotografia "Irmandade dos Homens Pretos" tirada em frente onde hoje funciona um banco na cidade. (Foto: Arquivo/Luís Eduardo de Oliveira)

O cientista social e historiador Luís Eduardo de Oliveira, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Ibérica da UNIFAL-MG, desenvolveu uma pesquisa que investigou o apagamento histórico da memória negra em Cabo Verde-MG. Por meio de documentos e relatos, o pesquisador reuniu evidências da existência da Capela de Nossa Senhora do Rosário e do Cemitério dos Homens Pretos anexo, cujos terrenos passaram a abrigar estruturas públicas modernas, como um parque infantil e uma agência bancária.

Luís Eduardo de Oliveira – egresso do Mestrado Profissional em História Ibérica e autor da pesquisa. (Foto: Arquivo Pessoal)

Negro, professor da rede estadual de ensino e vice-diretor da Escola Estadual Professor Pedro Saturnino de Magalhães, o pesquisador compartilha seu incômodo com o apagamento institucionalizado da presença e contribuição da população negra na formação da cidade. “Enquanto professor e historiador negro e residente na cidade de Cabo Verde, me incomodava que várias questões relacionadas à memória do povo negro eram ainda desconhecidas, como se não existisse, ou sequer fizesse parte da história de estruturação do município”, conta.

Ao ter contato com o livro de acentos dos membros da Irmandade dos Homens Pretos de Cabo Verde, congregação de louvor à Nossa Senhora do Rosário, datada do final do século XVIII, o acadêmico encontrou a chave para reconstituir parte dessa história. O manuscrito revelou a existência de uma irmandade atuante até o final do século XIX, com sede e capela própria, posteriormente incendiadas e destruídas.

“As evidências da Capela do Rosário e da Irmandade dos Homens Pretos de Cabo Verde identificam e apresentam uma nova perspectiva de se enxergar a História do município: a perspectiva dos excluídos e marginalizados”, pontua. “A partir do momento em que encontramos evidências inéditas que ajudam a contar a história de Cabo Verde, a cidade passa a ter sentido para todos os habitantes, desmistificando heróis e mitos e mostrando ao povo preto parte de sua memória e ancestralidade”, acrescenta.

A Capela do Rosário, que abrigava os membros da irmandade, foi substituída por um parque infantil, e sua memória, apagada. “A capela foi incendiada, passando por apagamento de memória cruel institucionalmente, intencionados por forças políticas contrárias”, delata o pesquisador.

Vista do Parque Municipal Ataliba Navarro de Cabo Verde-MG, onde até o final do século XIX, estava localizada a Capela de Nossa Senhora do Rosário e o Cemitério dos Homens Pretos. (Foto: Reprodução/Elleven Produções)

Para compreender o processo de apagamento da memória, Luís Eduardo de Oliveira foi orientado pela professora Elaine Ribeiro (Instituto de Ciências Humanas e Letras) e adotou o conceito de “memoricídio”, cunhado por Fernando Báez, que se refere à destruição institucionalizada daquilo que pode se tornar memória de um povo. “O espaço onde está localizado o parque municipal, é um exemplo claro deste fenômeno, em que não há sequer um vestígio da Capela do Rosário ou da Irmandade dos Homens Pretos, mesmo havendo registro de suas existências”, explica.

Elaine Ribeiro – professora do Instituto de Ciências Humanas e Letras da UNIFAL-MG – foi a orientadora da pesquisa. (Foto: Arquivo Pessoal)

Outro caso emblemático é o prédio onde funcionava a sede da irmandade, hoje ocupado por um banco. “A fotografia intitulada ‘Irmandade dos Homens Pretos’ foi tirada em frente de onde hoje funciona um banco agrário. Ela é importante, pois desperta questionamentos sobre a continuidade das manifestações negras no município e também sobre o que se tornou a instituição. Hoje é um banco. Mas é um banco especializado em quê? Quem tem conta neste banco? Este é um banco de acesso livre? Os descendentes das pessoas que estão na foto já entraram neste banco?”, questiona.

Além dos documentos, o pesquisador recorreu à memória oral para localizar o que poderia ser o último endereço da capela do Rosário, em um bairro periférico da cidade. O cruzamento entre fotografias dos anos 1940 e os relatos dos moradores confirmou a existência do templo. Esse trabalho deu origem ao Objeto de Aprendizagem do mestrado: o documentário Nas contas do Rosário, disponível no YouTube.

“A ideia principal era uma visita guiada virtualmente aos espaços de memória, mas foram aparecendo tantos conceitos, que o mais viável era apresentar os espaços em formato audiovisual, julgamos ser mais acessível e melhor utilizado em sala de aula”, conta.

Luís Eduardo de Oliveira também comenta a importância das entrevistas com a população do bairro para comprovar a existência da capela. “A memória oral precisa ser compreendida como parte de um processo de pesquisa, assim como a pesquisa em arquivos, livros, e outros documentos. Ela nos dá evidências e sentimentos que contribui para o entendimento generalizado sobre o que se está pesquisando”, defende.

Novos caminhos para a pesquisa

Registro do lançamento do livro “Ancestralidade e memória: A construção de Cabo Verde nas dimensões nativas e quilombolas”. (Foto: Arquivo/Luís Eduardo de Oliveira)

Os desdobramentos do estudo já estão em curso. Em parceria com a antropóloga Lídia Torres, também natural de Cabo Verde, Luís Eduardo de Oliveira criou o projeto MEMORA – Memória, Oralidade e Ancestralidade. Juntos, lançaram o documentário Presença e (r)existência negra na cidade de Cabo Verde, Minas Gerais e o livro Ancestralidade e memória: a construção de Cabo Verde nas dimensões nativas e quilombolas, no qual apresentam pesquisas inéditas e apontam para a necessidade de a região Sul de Minas ser vista antes do processo de colonização.

“Já temos planos de transformar o livro em história em quadrinhos, e trabalhar no ensino fundamental”, revela.

Para o futuro, o pesquisador pretende desenvolver seu doutorado sobre as manifestações de resistência afro-indígena na região, como as Congadas e os Caiapós.

“A cidade de Cabo Verde foi um centro econômico muito forte, e que quase todas as cidades da região pertenciam a sua comarca. Por isso, é importante entender que existe muito trabalho de pesquisa a ser feito na região de Cabo Verde. A pesquisa de mestrado, o documentário, o livro são contribuições que servem de pontapé para novas descobertas”, conclui.

A dissertação Nas contas do rosário: espaços de memória, fé e (re) existência negra na cidade de Cabo Verde, Minas Gerais, séculos XVIII e XIX pode ser acessada na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da UNIFAL-MG, neste link

O livro Ancestralidade e memória: a construção de Cabo Verde nas dimensões nativas e quilombolas pode ser adquirido aqui

Acesse também:

:: Documentário Nas contas do Rosário
:: Documentário Presença e (r) existência negra e indígena em Cabo Verde, Minas Gerais

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