Sobre a verdade

A imagem mostra a ilustração de um homem de perfil, cujo cérebro é representado como um quebra-cabeça parcialmente montado. Há peças de quebra-cabeça coloridas que preenchem a maior parte da área do cérebro, mas há um espaço vazio destacado. Com uma expressão pensativa, o homem segura uma peça de quebra-cabeça em uma das mãos, observando-a cuidadosamente.
Imagem ilustrativa. (Reprodução/Blog Educalar)

Conforme o magistério do filósofo alemão oitocentista Arthur Schopenhauer, existem quatro modalidades de fundamentação (razão de ser) cognitiva, a saber, a lógica, a empírica, a transcendental e a metalógica, donde, por conseguinte, existirem quatro espécies de verdade: a lógica, a empírica, a transcendental e a metalógica.

Verdade lógica (verdade formal)

A primeira designa aquele tipo de conhecimento abstrato cujo fundamento imediato repousa em outro(s) conhecimento(s) abstrato(s). A verdade lógica, enquanto tal, limita-se à fundamentação meramente formal, de modo que, por aí, um juízo será verdadeiro se coerentemente extraído de outro(s) juízo(s), tal como se verifica, emblematicamente, no raciocínio silogístico, o qual identifica-se com o próprio curso do pensamento.

Assim, examinemos, à guisa de exemplo, o seguinte silogismo: “Sócrates é ser humano. Os seres humanos são imortais. Logo, Sócrates é imortal”. Embora a conclusão seja empiricamente falsa (rectius: irreal), ela é formalmente válida, pois, do ponto de vista estrito da coerência lógica, trata-se de uma inferência decorrente de juízos (premissas) devidamente amarrados. Outro exemplo: “Só é responsável o ser que age à revelia do determinismo causal. O ser humano é um ser responsável. Logo, o ser humano age à revelia do determinismo causal”. Em que pese empiricamente problemática, na medida em que tudo, inclusive o ser humano, encontra-se submetido, conquanto de maneiras variadas, ao determinismo causal, essa conclusão, de um ângulo estritamente formal, é válida, senão por ser a decorrência lógica (a consequência necessária) das premissas do silogismo em questão.

Portanto, a verdade lógica é a verdade formal, que, como tal, será sempre uma meia verdade, pois descura do conteúdo de realidade. A propósito, trata-se do tipo de verdade preferido da teologia (que, sob esse aspecto, poderia ser definida como lógica nutrida de imaginação), das ideologias em geral (lógica nutrida de interesses espúrios) e das teorias conspiratórias (lógica nutrida de paranoia), certamente devido aos visos de “racionalidade” e “narrativa” que proporciona.  

Verdade empírica (verdade material)

Avançando, a segunda espécie de verdade é a empírica. Trata-se do conhecimento abstrato imediatamente conectado à intuições materiais (intuições a posteriori), isto é, percepções, ou, mais bem posto, casos e situações da realidade. Esse tipo de verdade costuma estar no início de um raciocínio indutivo ou no término de um raciocínio dedutivo. Entrementes, também poderá figurar, à guisa de exemplificação ou apoio, ao longo do desenvolvimento de um raciocínio. Seja como for, o importante, para a caracterização da verdade empírica, é o fato de a representação abstrata reportar-se imediatamente à algum tipo de percepção – representação intuitiva material – como ao seu fundamento ou razão suficiente.

Desse modo, por exemplo, as asserções “os seres humanos são mortais” e “toda mudança de estado tem sua causa em outra mudança que lhe precede imediatamente” têm verdade empírica, dado que consistem em juízos que podem diretamente estribar-se, por indução, no testemunho da experiência, o qual, todavia, é menos a realidade aparente rudimentar – em cuja crendice, ingênua ou sofística, pode-se chegar, no extremo, a tosquices como o terraplanismo e o negacionismo – do que a realidade aparente ampliada e aprofundada com o auxílio de técnicas e instrumentos de observação potencializadores da precisão dos órgãos dos sentidos.

Aliás, como se vê, a verdade empírica aparente também é uma meia verdade, comumente figurando, ao lado de meias verdades meramente formais, em discursos pseudorracionais, pseudoteóricos ou pseudocientíficos, decerto por seu verniz “realista” ou “fático”.

Isso inobstante, Schopenhauer estabelece a realidade, isto é, o conjunto das percepções/intuições empíricas (a posteriori), como a pedra de toque do conhecimento efetivamente verdadeiro e fecundo, de modo que a fundamentação satisfatória e o avanço propriamente dito do saber racional (leia-se: da ciência em sentido amplo) só serão possíveis quando enraizados no solo da experiência concreta.

Dessarte, embora, para fins didáticos, seja possível e útil separar os aspectos formal e material da verdade, ou mesmo falar em verdade formal e verdade empírica, como o faz Schopenhauer, fato é que, o conhecimento racional consistente é composto por elementos formal e material, vale dizer, por um conjunto de encadeamentos lógicos (necessários) de abstrações e conceitos, i.e., de juízos, que, direta ou indiretamente, referem-se à empiria. Isso significa dizer que nenhum juízo é verdadeiro sem um outro juízo pelo qual é, conquanto, em última instância, nenhum juízo é satisfatoriamente verdadeiro sem um fundamento empírico pelo qual é.

Verdade transcendental (no sentido de verdade a priori, não de transcendente)

Por seu turno, a terceira espécie de verdade seria a transcendental, a qual teria que ver com aquele tipo de juízo cujo fundamento imediato assentar-se-ia no a priori. Mais especificamente, para Schopenhauer, a verdade transcendental teria por fundamento o conhecimento proveniente das intuições puras espaço-temporais (sensibilidade formal), assim como da tomada de consciência da atuação apriorística da causalidade (entendimento) na percepção e ordenação dos objetos da experiência material. Exemplos de verdade transcendental seriam todos os axiomas da experiência possível em geral, os quais Schopenhauer desenvolve e dispõe com pretensão exaustiva em sua tábua dos predicados a priori (praedicabilia a priori).

Nesta, o filósofo afiança várias verdades transcendentais, tais como “o tempo torna possível a mudança dos acidentes”; “o espaço torna possível a persistência da substância”; e “[a matéria é] a substância permanente dos mutáveis acidentes. Essa mudança é determinada pela causalidade, enquanto enlace entre tempo e espaço e constitui a essência da matéria”. No tipo de verdade sob exame, o “conteúdo” (se é que assim se pode dizer, já que os pressupostos transcendentais constituiriam as formas da experiência possível, logo, do conhecimento) seria fornecido pelos dados direta ou indiretamente hauridos nas categorias a priori, que, em Schopenhauer, seriam apenas três, quais sejam, tempo, espaço e causalidade – que, contudo, juntas, resultariam na matéria, o produto da soma daqueles três fatores.

Aliás, uma vez que, como aduz o filósofo de Frankfurt, a matemática (aritmética e geometria) e a parte teorético-formal da ciência da natureza teriam por pano de fundo esses elementos a priori, compreende-se então o porquê que, para ele, apenas essas ciências apresentariam, em sua infraestrutura principiológica, verdades transcendentais (ou, como diria Kant, juízos sintéticos a priori), como tais dotadas de certeza apodítica e necessidade universal, logo, de infalibilidade. Por seu lado, as demais ciências, ou seja, as ciências empíricas em geral (que compõem a maior parte das ciências), ao contrário das ciências ditas puras ou apriorístico-transcendentais, como tais pretensamente infalíveis, só comportariam uma verdade contingente, logo, indutivo-probabilística, logo, falível.

Verdade metalógica

Por fim, diz-nos Schopenhauer que a verdade será metalógica quando o juízo extrai diretamente sua razão suficiente (fundamento) das próprias formas, leis ou condições do pensamento em geral, ou seja, dos próprios princípios lógicos, sejam eles: o princípio de identidade, o princípio de contradição (ou, se se quiser, de não-contradição), o princípio do terceiro excluído e o princípio de razão suficiente do conhecer. Consoante as definições de Schopenhauer, o primeiro indica que “o sujeito é igual à soma de seus predicados”; o segundo que “a um mesmo sujeito, um predicado não pode, ao mesmo tempo, ser atribuído ou recusado”; o terceiro que “de dois predicados opostos por contradição, um tem de ser atribuído a todo sujeito”, ou, simplesmente, “todo juízo é verdadeiro ou não verdadeiro”; e o quarto que “a verdade é a relação de um juízo com alguma coisa fora dele, enquanto sua razão suficiente”, quer dizer, “ninguém pode admitir algo como verdadeiro sem também saber por quê”.

Mas por que verdade metalógica e não metarracional? Porque, para o autor do Mundo, a lógica é o núcleo medular da razão. A bem ver, não há empecilho em empregar metarracional como sinônimo de metalógico ou metarrazão como sinônimo de metalógica. Contudo, o termo metalógica (e suas variações) tem o mérito de colocar em evidência, de plano, o cerne da faculdade da razão, que, como enfatizado por Schopenhauer, é a lógica (lato sensu).

Com efeito, é nesse passo que recebemos do autor uma explicação mais arrematada sobre a natureza formal da razão, porquanto, tendo a lógica por seu ser, e esta consistindo no conjunto das leis elementares do pensamento em geral, a razão não poderá figurar como outra coisa que não a faculdade de refletir e desenvolver abstrata e conceitualmente, conforme as leis que lhe são próprias (as leis da lógica), o material cognitivo procedente, direta (percepção, afecções) ou indiretamente (memória, imaginação), das representações empírico-intuitivas.

Nesse diapasão, a ciência da lógica equivale ao autoexame da razão, pois, ao se conscientizar das leis naturais que regem o ato de pensar, a razão adquire consciência de si mesma, isto é, das formas ou condições do seu funcionamento em geral. Além disso, por consistir no estudo das leis inatas com que opera a faculdade da razão, a ciência da lógica, embora teoricamente importante (na medida em que contribui para a compreensão da dimensão racional da natureza humana), é praticamente inútil, haja vista que, para Schopenhauer, não se pode aprender ou aprimorar significativamente a capacidade de raciocinar conscientizando-se de suas regras, tal como não se aprende ou aprimora a função digestiva conscientizando-se de suas leis. As leis da lógica ao raciocinar atuam tão espontaneamente quanto as leis fisiológicas no processo de digestão. Na verdade, tentar empregar as leis da lógica de forma consciente no ato de pensar mais atrapalharia do que auxiliaria. A única exceção a essa regra seria, como ressalva o mestre de Frankfurt, a possibilidade de usar de forma prática a ciência da lógica para ao menos chamar pelo nome as falácias ou sofismas (algo como um manual de denunciação técnica de mentiras), quer os estritamente lógicos, quando do desenvolvimento do próprio pensamento (monólogo), quer os dialéticos, quando das disputas com os outros (diálogo), quer, ainda, os retóricos, quando dos discursos (panegírico).

Conclusão

De tudo quanto foi dito sobre as condições de possibilidade da(s) verdade(s), pode-se então inferir que nenhum pensamento é sem algo pelo qual é, sendo certo que, este algo, cuja função é servir como fundamento imediato (razão de conhecimento) àquele pensamento (consequência), poderá ser (I) outro pensamento qualquer (verdade lógica/formal), (II) a experiência (verdade empírica/material), (III) a aprioridade (verdade transcendental), ou (IV) a própria lógica (verdade metalógica, a qual, ressalte-se, embora indiretamente presente em qualquer espécie de verdade – já que a verdade é o “negócio” da razão e a razão identifica-se com a lógica –, somente se caracterizará como tal quando de um juízo diretamente fundamentado em algum dos juízos consubstanciadores das leis lógicas).

(Adita-se que Schopenhauer também estabelece o insight de toda a sua metafísica da Vontade – a saber, que a lei da motivação seria a lei da causalidade vista por dentro, logo, que a vontade seria o substrato de todo este mundo dos corpos – como uma espécie de verdade. Contudo, não a arrola ao lado das quatro rubricas da verdade sob exame – formal, empírica, transcendental e metalógica –, certamente porque, diferentemente destas, que são deduzidas ou fundamentadas nos termos do princípio de razão suficiente, aquela seria uma consciência imediata, vale dizer, um conhecimento-sentimento evidente in concreto, como tal não podendo ser deduzido ou fundamentado pela razão, mas apenas ser elevado ou transmitido ao conhecimento in abstracto desta, isto é, ser depositado em conceitos. Portanto, embora qualificando-a como verdade e denominando-a a verdade filosófica por excelência, o autor do Mundo destaca-a das quatro espécies de verdade em apreço, já que seu fundamento, ou melhor, sua natureza sem-fundamento, sem-demonstração ou não-dedutível, mas evidente, faz dela uma verdade sui generis.)

Em sendo assim, conclui-se que o saber racional propriamente dito é formado pela atividade de pensar que articula e combina, máxime conforme o princípio de razão suficiente do conhecer, representações em geral e juízos, de sorte que a conexão fundamentada de conhecimentos é a tarefa mestra da faculdade da razão.

Porém – e aqui vão ressalvas importantes –, que nem sempre o desenvolvimento dessas conexões é sistemático e tampouco crítico o bastante para qualificar o saber racional como saber racional em sentido próprio, vale dizer, como ciência (episteme); que, não infrequentemente, nossa razão é não mais que um amálgama de senso comum, crenças supersticiosas, dogmas, opiniões (doxa), mitos, racionalizações autodefensivas, enviesamentos e ideologias – tudo isso, ao menos para se fazer pensável, precisando de alguma racionalidade (como o aparentemente lógico e/ou fático); que, por exemplo, um empresário ou um médico, embora experts em suas respectivas áreas, possam se comportar, em outras esferas relevantes da vida, de modo tão pouco racional do ponto de vista da maioridade da razão (como diria Kant), acreditando (se bem que, por vezes, não sem certo cinismo) numa quantidade considerável de tolices (íamos dizendo abobrinhas), como que “a religião é a fonte da moral”, que “a riqueza e o sucesso são consequências do mérito (quando não bênçãos dispensadas por deus)”, ou que “a pobreza e a punição são castigos divinos, logo, indícios de culpa”, para ficar nas tolices mais deletérias; que, não raro, somos, para falar à maneira de Huxley, maduros em relação à especialidade profissional, mas fetos em relação às grandes questões da vida; que é impossível se livrar totalmente do senso comum, dos pseudosaberes, das convicções diletas e dos preconceitos em geral, seja porque a ninguém é dada a capacidade de dominar cientificamente toda a realidade, seja porque a razão (no sentido de faculdade do pensamento) é ancila da vontade, o que, por conseguinte, coloca-a sob o risco constante de sacrificar o interesse da verdade em prol de outros interesses tão logo aquele venha a entrar em conflito com estes; que, enfim, a razão é muitíssimo limitada, frágil, precária e vulnerável, tudo isso (e mais) conforma, por óbvio, uma dimensão assaz relevante do assunto em tela, embora aqui só seja possível tangenciar, por já escapar do recorte do presente texto.


 

Referências

HUXLEY, Aldous. A filosofia perene: Uma interpretação dos grandes místicos do Oriente e do Ocidente. Trad. Geraldo Galvão Ferraz. São Paulo: Globo, 2010.

KANT, Imannuel. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 7 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. Trad. Leonidas Hegenberg; Octanny Silveira da Mota. 16 ed. São Paulo: Cultrix, 2008.

SAFRANSKI, Rüdiger. Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia: Uma biografia. Trad. William Lagos. São Paulo: Geração Editorial, 2011.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Trad. Jair Barboza. Tomo I. São Paulo: UNESP, 2005.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Trad. Eduardo Ribeiro da Fonseca. Tomo II, Vol. 1. Curitiba: Ed. UFPR, 2014.

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a quadrúplice raiz do princípio de razão suficiente: Uma dissertação filosófica. Trad. Oswaldo Giacoia Jr. e Gabriel Valladão Silva. Campinas: Editora da Unicamp, 2019.

 

Waldir Severiano de Medeiros Júnior é pós-doutorando em Direito e Justiça (FDUFMG). Mestre e Doutor em Direito e Justiça (FDUFMG). Professor colaborador de Direito no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da UNIFAL-MG. Consultor Jurídico (OAB-MG 216.370). Temas de interesse: Direito, Filosofia, Política e Administração Pública.

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