José de Alencar é um grande “vilão” quando se considera esta de muitas tragédias do ensino básico no Brasil: a incapacidade da escola de estimular, entre crianças e jovens, o hábito da leitura. É que os principais livros do escritor romântico, classificados como romances indianistas e urbanos, são, o mais das vezes, empurrados goela abaixo de estudantes completamente despreparados para os ler. E, o que é pior, empurrados em geral por professores que nem leram Alencar, ou até leram, mas também o detestam. Mau começo para a literatura, pilar civilizatório dos que mais fazem falta neste país de analfabetos funcionais e disfuncionais.
É uma discussão longa e complexa, pois a leitura dos clássicos nacionais – e Alencar é um deles, goste-se ou não – é etapa essencial para a compreensão do que é ser brasileiro e de qual é o lugar do Brasil no mundo. Sim, parte da “culpa” cabe ao próprio escritor, que escreveu para leitoras com pretensões a burguesas, seu público preferencial. Muito depois do Romantismo, a farta adjetivação de seus livros, à primeira leitura, passou a desagradar grande parte dos leitores cuja sensibilidade – bons tempos, aqueles – era formada pela tradição moderna. O excesso de idealização, também. Esses “defeitos” alencarianos não impedem que sua obra seja recomendável a um leitor atual, desde que tal leitor esteja preparado para compreendê-la, o que raramente ocorre entre estudantes brasileiros em idade escolar.
É uma grande perda, porque livros como Diva, Lucíola, Iracema e O guarani conservam, apesar de sua inatualidade ideológica, qualidades essenciais da grande literatura. A história de Peri, por exemplo, é um enredo cativante, no qual o protagonista tem um desempenho heroico que mistura Tarzan e McGyver – claro, um pouco prejudicado pela proverbial prolixidade do autor. Além disso, a idealização dos elementos brasileiros, se já era muito solene depois de Macunaíma, soa até ridícula nestes tempos em que os símbolos nacionais foram apropriados por arautos da barbárie.
Nesse contexto, é interessante saber que existe um outro José de Alencar: o Alencar irreverente e engraçado, precursor de elementos humorísticos – assim como Joaquim Manuel de Macedo, autor do também famigerado A moreninha – normalmente atribuídos monopolisticamente à obra madura de Machado de Assis. O romancete O garatuja (1873), incluído no volume de narrativas históricas intitulado Alfarrábios, é o melhor exemplo da verve satírica alencariana.
Chamá-lo “romancete” não tem intenção depreciativa. Pelo contrário: reduzido aos mínimos elementos, ele apresenta qualidades que normalmente se considera faltarem ao escritor. Há uma economia de meios desusada até nos seus menores romances, Cinco minutos e A viuvinha, quase telegráficos em comparação ao repolhudo O guarani, que funcionaria melhor para o gosto de um leitor moderno se reduzido a um terço do número de páginas. Daí a defender as tais versões condensadas de clássicos, são outros quinhentos.
O enredo de O garatuja é localizado no ano de 1659, quando o Rio de Janeiro contava cerca de 12 mil habitantes. Baseia-se em fatos verídicos, que Alencar desenvolveu ficcionalmente a partir de cinco parágrafos de uma velha crônica histórica. Os acontecimentos giram em torno de uma disputa entre a autoridade eclesiástica e o ouvidor nomeado pelo rei de Portugal, numa época em que os poderes da Igreja e do Estado ainda eram difíceis de separar.
Em resumo, o bispo local tenta acobertar um grupo de seminaristas desordeiros que, trepado numa árvore, vive a molestar a mulher e a filha de um tabelião. Este recorre ao ouvidor, equivalente na época a um juiz de primeira instância, dando motivo à instauração de um inquérito policial. Ora, o bispo se acha intocável pela justiça temporal em razão de sua investidura eclesiástica, e ameaça o ouvidor de excomunhão se o inquérito não for extinto. Esse, o estofo historiográfico – como se vê, atualíssimo.
Ocorre (e aqui intervém o velho Alencar dos romances de amor) que a filha do tabelião, chamada Marta, entretém incipientes amores com Ivo, o rapaz cujo apelido dá título à narrativa. Garatuja quer dizer desenho mal feito, mas o talento de Ivo, despontado ainda na infância, faz dele um agente importante na ação histórica; suas caricaturas satirizando o clero carioca assumem o papel mais tarde desempenhado pelas charges publicadas em jornal ou, recentemente, por “memes” veiculados via internet. No clímax do relato, Ivo consegue armar uma espécie de projetor de imagens em praça pública, e essa projeção alimenta o motim popular contra a arbitrariedade do bispo. No desfecho, a ousadia do rapazola é premiada com a mão de Marta, mas o pai exige sua renúncia ao ofício “indigno” de garatujista, obrigando-o a aceitar também a condição de sócio e herdeiro de um cartório.
O enredo sentimental não passa de um pretexto, ao contrário do que ocorre na maior parte da obra alencariana. O verdadeiro interesse do autor, e o que faz O garatuja ser uma de suas obras mais interessantes, é satirizar a elite colonial do século XVII e, por tabela, a do incipiente império que nunca deu a Alencar a posição de que se achava merecedor. É transparente, nos comentários do narrador, a mágoa do ficcionista por não ter sido escolhido para o Senado pelo imperador Pedro II. Além disso, Alencar era filho de padre, o que deve ter influído em seu mordente anticlerical.
Nesse registro tão diferente do costumeiro estilo pesadão do escritor, com cada substantivo pejado por dois ou três adjetivos, avulta a gozação de um costume ainda hoje muito em voga nas lides jurídicas: o uso do latinório de gaveta como exibição de uma cultura o mais das vezes inexistente, mas eficaz, na consideração dos basbaques, como garantia de prestígio e poder. O esforço de Alencar para reproduzir o linguajar da época, contudo, resulta em passagens tão engraçadas como exigentes de algum esforço para o entendimento do leitor comum. Não se ganha nada sem perder algo, certo?
Podem causar espécie, por exemplo, o trecho em que o ouvidor prepara “embrulhos de drogas” e as três ocorrências da palavra “boceta” numa mesma página. Ocorre que as drogas, no caso, eram os temperos culinários preferidos do personagem, e boceta era uma caixa de formato oval que se usava para guardar rapé. A ousadia erótica, que existe em Iracema, Lucíola e O guarani, mas passa despercebida à maioria dos leitores, aqui não vai além dos “seios de jenipapo” da mocinha Marta.
O garatuja, bem trabalhado como leitura escolar, tem chance de ser tornar muito mais instigante para os jovens leitores de hoje que a patacoada nacionalista, um dia novidade importante, mas erodida por dois séculos de cultivo da enganação ideológica encobridora das mazelas coloniais, especialmente a escravidão. Esse Alencar satírico, tão atual quanto ignorado, tem muito mais a dizer para quem aspira a uma consciência verdadeira do que foi e continua sendo o Brasil.
Onde encontrar:
Livrarias e sebos