Mostra-se pela espessura do volume, que chega perto de igualar-se à do Ulysses de James Joyce, a pretensão da autora de A república dos sonhos (1984). Nélida Piñon parece ter pensado, com esse romance, estar a produzir uma obra grandiosa, e não faltou quem lhe subscrevesse a hybris, tendo havido até um resenhista da Publishers Weekly (transcrito na contracapa) que a promoveu à “categoria de gênio”. A narrativa, no entanto, está longe de justificar tanta munição: além de enfadonha ao extremo, falta-lhe a mais mínima intensidade, de modo que o leitor poderá muitas vezes sentir-se, como o protagonista Madruga, “enredado numa novela de última classe”.
A matéria do enredo não é ruim. Ele reconstrói a memória da família criada por um casal, Madruga e Eulália, de imigrantes galegos que aportam no Rio de Janeiro no início do século XX. Ao que tudo indica, é marcante a presença do elemento autobiográfico, sendo um dos narradores – Breta, neta daqueles pioneiros – evidente projeção da própria autora, que realmente descendia de espanhóis vindos da Galiza. Mas o tratamento narrativo dado tal estofo é bem problemático, a começar pelo fato de ser muito mais digressivo do que narrativo.
Fosse esse o único senão, estaria bem. Mas a escritora é uma espécie de ventríloqua de seus personagens; todos eles se expressam no mesmo registro de linguagem, o que constitui falha elementar de concepção ficcional, contribuindo fortemente para a sensaboria do relato. Ademais, Nélida Piñon, em termos de estilo, chega a lembrar Paulo Coelho, tão numerosos são seus tropeços de lógica e até mesmo de gramática. Para quem acha dispensável o domínio do idioma (mesmo o autor se candidatando a clássico), basta garimpar as abundantes imprecisões do texto, como colocar um personagem a “arrastar-se pelas paredes”, expressão mais adequada a lagartixas do que a seres humanos. Os deuses, para a autora, podem ser considerados “criaturas”, e pessoas “sobem ladeira acima” – talvez por falta de ousadia ou criatividade.
Imperícias desse tipo, cuja lista completa seria também muito enfadonha, parecem derivar de uma escrita improvisada. Não é que o romance não tivesse um projeto: desde a primeira página ficamos a esperar pela morte de Eulália, que ocorre bem próxima do desfecho. No longo caminho entre o anúncio e o fato, os narradores usam episódios da história familiar para espraiar-se em longas e sentenciosas falas, cheias de desvios, sobre os mais diversos assuntos, desde lendas celtas que estariam na origem de uma cultura especificamente galega até episódios da história brasileira abrangendo a parte que vai do fim da República Velha até a decadência do regime militar.
É claro que a crônica familiar poderia dar liga com os fatos históricos, mas isso dependeria de a narrativa ser estruturada de modo mais meticuloso. Como ficou, o texto de Nélida passa a impressão de que ela começava a escrever cada capítulo sabendo apenas que, num momento situado no futuro, acabaria por chegar ao epílogo. A improvisação autocomplacente gera saltos temporais injustificáveis que podem até passar, a leitores hipnotizados pelo andamento sonambúlico do texto, por recursos de estilo. De fato, são falta de recursos, e destaque-se aí a mania de isolar orações subordinadas, idiossincrasia sem qualquer justificativa em imperativos expressivos. Valeria a pena se funcionasse, mas é justamente por não funcionar que o romance se torna extremamente cansativo. Menos do que uma narração, ele é uma crônica do adiamento da narração.
A favor de A república dos sonhos, só o fato de conseguir, no final de seu percurso desnecessariamente estendido e cheio de vaivéns, contar o seguinte.
Madruga era um jovem camponês galego que aos 13 anos resolveu “conquistar a América” e veio parar no Brasil. No navio inglês em que viaja, fica amigo de outro menino espanhol, chamado Venâncio. Chegando à então capital brasileira, Madruga logo se revela um empreendedor visionário, o que o leva da miséria à riqueza e desta à opulência; Venâncio, ao contrário, não tem ambição e é um contumaz crítico dos métodos do amigo, de quem, no entanto, vive às custas. Terminam ambos solitários numa mansão do Leblon, depois que a família de Madruga se desfaz, principalmente devido a discórdias morais e ao entrechoque das ambições, sendo o episódio mais traumático a morte de Esmeralda, a filha mais velha, cuja vida sexualmente livre a fizera afastar-se da família. O produto dos amores de Esmeralda é Breta, que na última página anuncia ter resolvido contar a história do avô.
Num resumo tão apertado, fica faltando falar de ingredientes interessantes como a relação problemática de Madruga com outro filho seu, o perdulário Tobias, assim como do amor platônico de Venâncio pela mulher do amigo, personagem de substância quase ectoplasmática. Há no livro tais ingredientes – sobretudo, indivíduos enredados em dramas humanos, demasiado humanos –, o problema é que eles submergem na maré do discurso monótono que unifica todas as falas, tanto de narradores como de personagens. Essa retórica de proporções quase oceânicas, vazada em linguagem cuja inabilidade termina por falseá-la, torna o livro muito, muito ruim – páreo duro para os piores estilistas da ficção brasileira, que não são, infelizmente, poucos.
A república dos sonhos é uma história de família bem convencional tendo como pano de fundo a história brasileira do século XX. A propósito, o Brasil é a república do título – mas isso não diz muito sobre a substância do livro. Numa concepção narrativa semelhante, Incidente em Antares é infinitamente superior, com a vantagem de Érico Veríssimo não supor que o vento sudoeste possa chegar ao Leblon vindo “diretamente da Patagônia” e nenhum personagem seu carregar “vacas a tiracolo”.
Título: A república dos sonhos
Autora: Nélida Piñon
Gênero: Ficção Literária | Romance
Ano da edição: 2015
ISBN: 978-85-01-10478-6
Selo: Record