Um louco de pedra, dirá a maioria dos leitores, arriscando-se à sanção implacável do mimimi politicamente correto, que já não hesita em cobrar publicamente de alguém o exercício de uma linguagem “não-binária”, exatamente como as ortodoxias religiosa e estalinista de antanho. Mesmo assim, transparece em Os reis da terra (1984) um inegável talento literário, qualidade meio selvagem e intrinsecamente ligada aos valores católicos que devem ter contribuído para levar ao hospício o autor, José Vicente, mineiro de Alpinópolis – esse apelido sem graça que substitui o poético “Ventania”, consta que dado à cidadezinha por sua fundadora, a cujo cavalo se chamava igual.
Não por acaso José Vicente de Paula (1945-2002) recalca totalmente em sua narrativa, e isso é uma pena, o tempo passado na instituição psiquiátrica. O livro resume a biografia do autor, que chegou a ser um celebrado dramaturgo de vinte e poucos anos, tendo ganhado dois prêmios Molière, entre outras distinções no mundo do teatro. Sua primeira peça pode ser vista numa montagem recente, as falas em descompasso com a imagem, no Youtube. Chega Lembrar Esperando Godot, de Beckett, com um protagonista aparentado daqueles personagens desesperadamente tagarelas de Dostoiévski. Fica, porém, um pouco estragada pelo desfecho, tornando-se retrospectivamente meio panfletária.
É uma injustiça o relativo esquecimento em que caiu a obra de José Vicente. Será que pelo menos em sua Ventania, onde naquela época “não existiam ateus”, ainda se lembram dele? Deveriam, pois Os reis da terra é antes de mais nada uma homenagem à cidade – ou melhor, a um pedaço do município de Alpinópolis que abrigou, na segunda metade do século XIX e na primeira do XX, o “latifúndio” de 400 alqueires da avó do narrador, Carolina, erigida numa espécie de santa responsável por comandar a luta do catolicismo tradicional contra os valores modernos, tidos por José Vicente como pecaminosos e até diabólicos.
Mas bem que o herói chafurdou nessa lama. Depois de ganhar seu primeiro Molière, o qual, além da estatueta, concedia ao premiado uma viagem à Europa, José Vicente conta que viveu uma existência de dissipações, em que pelo jeito as drogas e o rock’n’roll tiveram mais destaque que o sexo. Afinal, sua primeira aventura amorosa lhe dera mais asco do que prazer…
O livro foi escrito com a fluência de uma autobiografia sem grandes pretensões literárias. Aí sua grande qualidade, pois consegue manter o leitor interessado nas peripécias do rapaz de Ventania e sua família ao longo de quase 300 páginas. A única coisa previsível, e isso para leitores mais experimentados, é que em algum momento a fixação religiosa do protagonista deveria desembocar no delírio; essa é uma história bastante comum em relatos de pacientes com transtorno mental.
Tudo começa com a descrição idílica, quase ao estilo casimírico-de-abreu, da infância na fazenda do Angola, já um resto da extensão inicial das terras do avô, que somavam, na conta do autor, 2.800 alqueires. Para quem viveu o ocaso de um Sul de Minas ainda rural, esses capítulos iniciais poderão ter o sabor inequívoco da saudade. Mas já neles desponta a tendência à dissociação psicológica, talvez capitulável como exemplar caso de paranoia: têm destaque desde as primeiras páginas as “conversas mentais” entre José Vicente e sua família, mais tarde amplificadas num combate espiritual entre esses “reis da terra” (católicos verdadeiros) e a “ideologia” norte-americana especiosamente identificada com os valores do Rio Grande do Sul. É provável – mas isso fica para exegetas mais profundos – que tal identificação remeta à incipiente industrialização do Brasil capitaneada por Getúlio Vargas, afinal o líder de um movimento que desbancou a velha política do café-com-leite, tão identificada com o catolicismo pré-Vaticano II e com as tradições “morais” do latifúndio.
O sonho do narrador desmorona quando sua família se muda primeiro para Passos, depois para São Sebastião do Paraíso, e a vida começa a ficar economicamente difícil. Então ele entra para o seminário de Guaxupé, depois abandonado, e termina em São Paulo como funcionário do Banco do Banco do Brasil, experiência claramente transposta para o enredo de O assalto. Ainda antes de estrear no teatro, José Vicente aposta numa improvável carreira de dramaturgo e pede demissão, iniciando a nova vida pontuada por amizades ilustres no mundo artístico de então, como Antônio Bivar e Norma Benguell. Chega-lhe rapidamente o sucesso, e sua obra dramatúrgica cresceu bastante ao longo da década de 1970. Em 2010, a Imprensa Oficial de São Paulo editou seu teatro completo em dois volumes, dos quais o primeiro está há bons anos esgotado.
As aventuras de José Vicente são um estranho romance. As personagens e os episódios vividos devem ser rigorosamente reais, nem mesmo tiveram seus nomes trocados. A ficção, é claro, fica por conta das naturais distorções da memória e dos exageros da imaginação. Na última parte, intitulada “As cidades do mal”, ganha densidade a particularíssima teoria do autor sobre seu papel na luta da Igreja para impor a “verdadeira” versão do cristianismo no Brasil. É aí que a simbologia de José Vicente, desenvolvendo mitos esquipáticos como aqueles versando sobre os poderes do nhambu e da jararaca, descamba para o simples delírio – ainda que ele continue afirmando-se “racional” até a última página – e torna bastante enfadonha boa parte da segunda metade do livro. Mesmo assim, Os reis da terra é uma obra cujo valor mereceria ser mais reconhecido e cuja leitura pode ser muito interessante, sobretudo como retrato (bem imperfeito, é verdade) de uma vida imaginativa que o século XXI praticamente extinguiu. Nesse sentido, a reivindicação profética dos escritos de José Vicente tem bastante razão de ser.
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