A inteligência estaria respirando só por aparelhos, não fossem intelectuais como a argentina Ariana Harwicz. Em seu recente O ruído de uma época (2024), ela trafega quase o tempo todo na contramão do que anda passando por pensamento “progressista” – e com o qual, aparentemente, sua única convergência é a enfática defesa do direito ao aborto. Apresenta uma rara coragem de confrontar “aqueles adaptaram seu dicionário e sua linguagem a este tempo, daqueles que contestam os usos da linguagem que não se adapta à sua ideologia”, ou seja, aquele tipo de militância disfarçada de reflexão que acaba de varrer do mapa eleitoral os partidos de esquerda no Brasil.
Autora de livros como Morra, amor (2019), Harwicz tem obras traduzidas para 18 idiomas. Sua discussão da cacofonia contemporânea começa por pequenos textos, alguns deles se reduzindo a aforismos; outros, curtas narrativas sobre o patrulhamento ideológico feito pelo tipo de ativista que ela relaciona à “gangrena da arte neste século”, o assim chamado politicamente correto, marcado por uma “busca da pureza ideológica” que “já era característica do nazismo, é própria de qualquer sistema totalitário”. E o nazismo, a propósito, interessa-lhe muito, como é natural a quem teve membros da família mortos em campos de extermínio, tanto que seu autor preferido é o húngaro Imre Kertész, autor de obras que ficcionalizam a Shoah (nome dado pelos próprios judeus ao genocídio de que foram vítimas).
Na primeira parte do livro, intitulada “A escrita doutrinada”, a autora trata insistentemente da “inquisição” retroativa a que têm sido, a seu ver, submetidos os escritores de todos os tempos por meio da reescrita ideológica, “revanche em que opera uma instrumentalização das minorias” sob o pretexto de “esvaziar a linguagem de violência”, objetivo impossível na prática. O reducionismo do ser humano a sua condição biológica, ela argumenta, é tão típico do fascismo como a tentativa de apagar a História, transformar o passado naquilo que ele sabidamente não foi. Sim, Ariana Harwicz está dizendo, como todas as letras, que existe um fascismo de esquerda.
Dito assim, pode parecer que o livro é um samba de uma nota só. Mas, em primeiro lugar, O ruído de uma época está mais para réquiem, o réquiem da inteligência europeia que conseguiu sobreviver a duas guerras mundiais. Em segundo lugar, funciona como uma teoria pessoal da escrita literária e do sentido que pode haver em alguém ainda escrever, estando rodeado pelos escombros da civilização. O tipo de prática literária que ela propõe (e pratica) consiste, antes de mais nada, em evitar a “alienação da língua”, que sempre será “a grande forma de escravidão”.
Muito úteis, tais ponderações vindas de uma mulher que nem forçando muito a barra alguém poderia chamar de antifeminista. Para ilustrar o ambiente de patrulha que vem destruindo a cultura, ela recupera à História factual esta pequena fábula sobre o fim da polícia política do regime comunista alemão:
Em 1991, os arquivos da Stasi foram abertos. Muitos quiseram saber quais foram seus
espiões e delatores. Foram seus próprios irmãos, amigos e pais. Houve mães que
espionavam a filha, sem saber que a filha também as espionava. Ninguém conhece
ninguém, e ninguém se conhece, até sentir medo.
A segunda parte do livro é menos interessante, feita de uma troca de mensagens eletrônicas entre a autora e seu amigo chileno, o tradutor Adan Kovacsics. Porém, embora rarefeito em relação à parte anterior, esse curto diálogo contém um trecho como este, escrito por Kovacsics:
A grande tarefa de hoje é apreender os fios da palavra autêntica em meio à avalanche de
linguagens jornalísticas e administrativas, todas coercitivas, todas terrivelmente
limitadoras, todas inimigas da poesia, da profecia.
Na terceira parte, sob o título geral “O escritor aparenta ser um moribundo”, Harwicz volta ao tom da primeira, à teorização do papel da literatura no mundo contemporâneo. A diferença é que alguns dos textos são um pouco mais longos, permitindo a exposição mais detida de suas ideias. Nem tão longos assim, porém; o maior deles tem apenas cinco páginas e traça a rápida biografia de Yann Lemée, o companheiro da escritora Marguerite Duras nos últimos anos de vida. Nem sempre é muito óbvia a ligação que essa parte tem a ver com as anteriores, mas permanecerá sempre o espírito de contestação à superficialidade da cultura atual. Ariana Harwicz encarna como poucas pessoas o conceito de “contemporâneo” formulado por Giorgio Agamben: ser contemporâneo de verdade é estar em descompasso com a época em que se vive.
Título: O ruído de uma época
Autora: Ariana Harwicz
Tradução: Silvia Massimini Felix
Gênero: Ensaios | Ciências Sociais | Filosofia
Ano da edição: 2024
ISBN-10: 6587342523
ISBN-13: 978-6587342528
Selo: Editora Instante
Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.
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