
Meios de comunicação tradicionais como rádio, mídia impressa e TV emitem uma mensagem única, em massa, de um polo transmissor para vários receptores, passivos. Nas plataformas digitais, contudo, a experiência midiática tornou-se ativa e segmentada, pois algoritmos identificam gostos, interesses e inclinações nos cliques e pesquisas de cada usuário, oferecendo-lhe conteúdo baseado em suas preferências. Tal monitoramento da navegação individual facilita vida de todo mundo: quem busca conteúdo na internet, já encontra um cardápio desenvolvido para si; anunciantes, já sabem a quem dirigir sua publicidade e como fazê-lo.
Entretanto, a personalização de conteúdo oferecido aos usuários das plataformas tende a criar-lhes um ambiente no qual são expostos principalmente a informações que confirmem suas crenças preexistentes. Formam-se, assim, comunidades com percepções uniformes e simplificadas da realidade. Algoritmos, portanto, desempenham um papel central na formação de bolhas de percepção, isto é, de ambientes virtuais reabastecidos diariamente de informações e conteúdos aos quais seus membros já estão predispostos.
À medida que vão se tornando impermeáveis, as bolhas de percepção convertem-se em verdadeiras câmaras de eco, nas quais prevalece o discurso em uníssono. Eventuais divergências de opinião, questionamentos, evidências contrárias, vozes dissonantes, contra-argumentos e fatos incômodos são sumariamente desqualificados, repelidos, reprimidos ou mesmo ignorados pelos seus participantes. É a consumação do isolamento informativo de seus membros, entrincheirados em suas certezas.
As bolhas de percepção são um ambiente fértil para polarização e extremismos. Não por acaso, converteram-se na principal ferramenta política hoje em dia, dado seu enorme e incontrolável potencial de desinformar, inculcar certa visão de mundo, distorcer fatos, direcionar escolhas políticas, manipular a opinião pública e angariar apoio popular. Tudo com base em “rastros de navegação” de seus usuários.
Lideranças e movimentos radicais podem facilmente conduzir seus simpatizantes a uma realidade paralela. Apegados às suas crenças prévias e desconectados de notícias do mundo “lá fora”, os indivíduos confinados às bolhas tornam-se presas fáceis, abraçando teorias da conspiração, compartilhando notícias falsas, negando fatos amplamente aceitos, desenvolvendo paranoias e reproduzindo discursos de ódio. Quem nunca assistiu à repentina radicalização de pessoas próximas? Quem não conhece algum cidadão pacato e alheio à política que se transformou num virulento combatente de inimigos aleatórios e até imaginários? Quem não precisou afastar-se de parentes, que se tornaram intolerantes, agressivos e tóxicos de uma hora para outra?
Assim, formam-se as seitas políticas, caracterizadas pelo fanatismo, pela dissonância cognitiva e pela desconexão com a realidade. Apesar de parecerem ingênuos, vídeos, memes, piadas e “notícias” fomentam uma perigosa fantasia compartilhada. Alheios à realidade lá fora e tendo suas certezas confirmadas, membros de seitas políticas podem entregar-se à insensatez. No caso brasileiro, seus participantes negaram vacinar-se, convenceram-se de uma suposta farsa eleitoral, acamparam por meses em portas de quartéis, penduraram-se em dianteiras de caminhões, atearam fogo ao próprio corpo e até mesmo autoexplodiram-se, na Praça dos Três Poderes. Comemoraram prisões de juízes da Suprema Corte que nunca aconteceram, estados de sítio nunca decretados e aguardaram obstinadamente as tais “72 horas”, ao final das quais nada acontecia.
Mesmo que suas profecias não se cumpram, as seitas políticas não se esvanecem, pois o que as anima não são os fatos objetivos. Elas existem pelas crenças dos indivíduos, independente de dados. Quem já se encontra disposto a crer em algo prescinde de fatos comprobatórios. Joe Mulhall (2022) acompanhou grupos de civis armados que patrulham a fronteira entre EUA e México, em busca de supostos muçulmanos terroristas que estariam ingressando em seu país por ali, embora nunca se tenha visto qualquer evidência disso. Não importa: eles acreditam e isso basta. Seitas dispensam constatações. Importam as inclinações pessoais de seus membros, reforçadas diariamente dentro das câmaras de eco. Algoritmos estão sempre à espreita, recomendando vídeos, canais e influenciadores baseados em interesses detectados.
Seitas políticas sempre existiram e colaboraram para a ascensão e sustentação de regimes autoritários. Agora, porém, dispõem de mecanismos que as mantêm intensamente conectadas, coesas, imersivas e munidas de uma capacidade inédita de inflamar seus membros e de se retroalimentar diariamente. Várias democracias ao redor do mundo estão desenvolvendo regulamentações para as plataformas, a fim de controlar o fenômeno, em nome da paz social.
Os vídeos a seguir retratam a vivência cotidiana em seitas políticas:
Caminhoneiros comemoram estado de sítio que não foi decretado
O que realmente aconteceu com os invasores do Capitólio?
Bolsonaristas comemoram falsa prisão de Moraes e ‘fraude confirmada’ e viralizam nas redes
Bolsonaristas comemoram vitória após Exército desistir de remover estruturas de acampamento
Apoiadoras de Bolsonaro vão para manifestação com bandeira de Israel: ‘Somos cristãs como Israel’
Por fim, algumas boas referências sobre o assunto:
DEMURU, Paolo. Políticas do Encanto. Extrema Direita e Fantasias de Conspiração: São Paulo, Elefante, 2024.
EMPOLI, Giuliano Da. Os Engenheiros do Caos. São Paulo: Vestígio, 2019.
KLEIN, Ezra. Por qué estamos polarizados. Madrid: Capitán Swing Libros, 2021.
MULHALL, Joe. Tambores à Distância: Viagem ao Centro da Extrema Direita Mundial. São Paulo: Leya, 2022.
O’NEIL, Cathy. Algoritmos de Destruição em Massa: Como o Big Data Aumenta a Desigualdade e Ameaça a Democracia. Santo André, SP: Editora Rua do Sabão, 2020.
ROCHA, Carlos. Algoritmos das Redes Sociais e Seitas Políticas: Reflexões sobre Tecnologia, Democracia e Sociedade. São Paulo: Pimenta Cultural, 2024.
ROCHA, João Cezar de Castro. Guerra Cultural e Retórica do Ódio: Crônicas de um Brasil Pós-Político. Goiânia: Editora e Livraria Caminhos, 2021.
ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância. A Luta por um Futuro Humano na Nova Fronteira do Poder. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.

Thiago Antônio de Oliveira Sá é professor do curso de Ciências Sociais do Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL) da UNIFAL-MG. Dedica-se às áreas de Teoria Sociológica, Sociologia da Educação e Pensamento Social Brasileiro.
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