Guilherme Terreri, graduado em Letras e Artes Cênicas, criou a persona Rita von Hunty como um meio de expressar sua trajetória artística e refletir sobre gênero, sexualidade e identidade. Desde o Carnaval de 2013, Rita se tornou um veículo de comunicação e expressão, permitindo que Guilherme dialogasse com o público e compartilhasse suas ideias sobre cultura, educação e sociedade.
Aproveitando a vinda para participação nas ações da Semana da Diversidade, organizada pelo Movimento Gay de Alfenas (MGA), que destacou uma palestra na UNIFAL-MG no dia 28 de agosto – com inscrições disputadas e transmissão para auditório extra – o Jornal UNIFAL-MG conversou com o professor e ator e, nesta entrevista, ele fala – com aprofundamento e sem papas na língua – sobre a construção da persona, suas influências teóricas e a importância da universidade pública e da cultura como espaços de emancipação e reflexão social. Confira:
Quando o Guilherme, graduado em Letras pela USP e em Artes Cênicas pela Unirio, decidiu criar a Rita von Hunty?

Guilherme Terreri: Eu costumo responder essa pergunta com frequência, porque ela é um ponto recorrente nas entrevistas. E sempre brinco que, para respondê-la, o mais sincero que posso fazer é devolver com uma nova pergunta: o que será que a gente entende por criação dessa persona? Porque toda persona — e “persona” é uma palavra que nos acompanha há milhares de anos, significando máscara — está diretamente relacionada a quem a constitui.
Em outras palavras, a Lady Gaga é a persona de uma cantora chamada Stefani Germanotta. E em que momento Stefani Germanotta a criou? Talvez aos quatro anos de idade, quando começou a cantar, sabe? O processo de constituição de uma persona está sempre intimamente ligado ao sujeito que a cria e à sua própria história. Normalmente, a persona é um veículo, um mecanismo, uma tecnologia, um conjunto de técnicas que usamos para nos comunicar publicamente.
Então, talvez eu esteja criando a Rita desde sempre. Eu sou uma pessoa que lida com questões de gênero, que precisou entender o que é gênero, qual é o meu papel dentro dele, com o que me identifico. Depois, precisei compreender a minha sexualidade. Todo esse processo foi construindo referências: as mulheres que me acompanharam, que me formaram, que me deram aula, as divas do cinema que me encantaram… e por aí vai, porque esse é um caminho interminável.
Mas a Rita aparece como uma persona drag, com o nome Rita von Hunty, no Carnaval de 2013. Antes disso, já tinha me montado algumas vezes, feito personagens femininas no teatro, então posso dizer que a Rita foi ensaiada desde sempre. Vamos pensar: já são 13 anos de Rita, 13 anos de Rita.
Você acredita que chegou onde queria? E considera que o que faz é uma prestação de serviço para a comunidade, no sentido de ajudar a pensar uma sociedade um pouco melhor?
Guilherme Terreri: Sim. Mas acho importante dizer que nunca tenho isso como um foco. Eu não penso o meu fazer nesse sentido. É claro que existem camadas menos conscientes, que me acompanham. Por exemplo, tem uma consciência que me acompanha: eu sou produto de duas universidades públicas. E a universidade pública é um projeto político de uma nação. Então, poder devolver à sociedade, de alguma forma, aquilo que recebi — seja em forma de novos acessos ou de novas formações — é um sonho para mim.
Mas, ao mesmo tempo, digo que não penso muito nisso, porque ficar elocubrando sobre esses aspectos pode nos dar um certo descolamento do fazer. E, para mim, o fazer é sempre mais importante do que seus resultados. Os resultados, provavelmente, só descobriremos em décadas.
Imagine se Van Gogh, enquanto pintava, estivesse pensando nos resultados? Ele nunca vendeu uma tela em vida. Ele não foi exposto, ele não foi laureado em vida. Ele estava preocupado em pintar, porque pintar era a sua realidade.
Da mesma forma, eu estou preocupado em dar aula, em pesquisar, em comunicar, mas sem me permitir pensar nos desdobramentos disso, porque eles não pertencem apenas a mim; eles também serão disputados em uma sociedade.
É claro que existe um projeto, existe propósito, empenho e realização. Mas não fico pensando se já cheguei a algum lugar, porque a beleza da jornada, da estrada é a estrada em si, não é o destino final. A gente pensa a viagem em todos os pequenos momentos que a constituem. Quando pensamos em uma viagem, não pensamos só no ponto de chegada, mas em todos os pequenos momentos que a constituem. E a estrada de fazer a Rita tem sido isso: 13 longos, duros, árduos e, ao mesmo tempo, maravilhosos anos de trabalho.
Pelo seu trabalho e posicionamento, a gente percebe que o seu arcabouço teórico é extremamente amplo e aprofundado. Quais são seus principais autores, aquele autor e aquele livro da vida do Guilherme?
Guilherme Terreri: São muitos, né? Porque eu lido com algumas áreas. Mas eu diria que existem aqueles que alinham o meu pensamento. Ao mesmo tempo, faço educação popular, comunicação, agitação, propaganda. Ao mesmo tempo faço pedagogia, estudos de gênero e crítica cultural. Então, o rol de referências é vertiginoso — e ele tem que precisa ser, né?
Acho que as melhores aulas da minha vida foram aquelas em que professores e professoras nadavam em referências, sabe? Assim, podíamos pensar uma mesma questão por 4, 5, 12, até 28 pontos de vista diferentes.

Talvez, então, os teóricos principais para a construção e para o alinhavamento do meu pensamento sejam aqueles preocupados com a emancipação humana, com a igualdade radical e com um projeto humano de sociedade. Nos estudos culturais, posso citar alguns: Raymond Williams, na Inglaterra; Louis Althusser, na França; Antonio Gramsci, na Itália; Theodor Adorno, nos Estados Unidos; e, talvez, Fredric Jameson, também nos Estados Unidos.
Esses são os intelectuais que serviram como corrimão da escada do meu pensamento. Dificilmente me lanço a refletir sobre alguma questão sem colocar a mão nesse corrimão.
Já que Adorno está entre os seus estudos, a Rita Von Hunty também é é um produto da indústria cultural?
Guilherme Terreri: Sempre será, né? O que não é um produto da indústria cultural?
Tinha uma pergunta que eu ia fazer — até anotei — mas você acabou respondendo na primeira. Eu ia perguntar se a Rita é um personagem, uma persona ou o seu alter ego.
Guilherme Terreri: Eu não sei se essa linha é tão nítida. Sei que entre persona e personagem existe um abismo. Agora, “alter ego” é uma expressão à qual eu nem dou muita atenção, porque significa “um outro eu”. Mas, veja: com a família, você já é um alter ego; namorando e com a família, são duas pessoas; namorando, família e trabalho, são três; namorando, família, trabalho e amigos, às vezes são quatro, né?
E tanta gente que na igreja é de um jeito e fora dela, de outro, né? Então, “alter ego” não é um conceito com o qual eu me preocupe tanto. Já o personagem tem começo, meio e fim, e suas falas estão prescritas. A persona, por outro lado, é uma máscara que alguém veste para se comunicar com o público.
Você acredita que é de fato necessário as redes serem regulamentadas?
Guilherme Terreri: Sem sombra de dúvida. As redes têm que ser regulamentadas porque elas são empresas e não deveria existir uma empresa atuando sem regulamentação.
Agora, qual a sua percepção de outros profissionais que usam as redes simplesmente para entretenimento ou até para questões ilegais e criminosas.
Guilherme Terreri: Fico triste, e acho que isso é o mínimo. Mas também é preciso entender que nunca estamos fora da determinação histórica e material do nosso tempo. Em uma sociedade em que a gente paga para viver, não é de se estranhar que as pessoas transformem tudo em mercadoria.
O “Seu Carlinho”, o velho Marx, já nos dizia que essa é a realidade do capital. A sociedade capitalista avança à medida que a sociedade humana reifica todas as suas produções. O reino do capital cresce à medida que o reino humano míngua. À medida que tempo livre é mercadoria, a justiça é mercadoria, a saúde é uma mercadoria, a beleza é uma mercadoria, o bem-estar é uma mercadoria, a moradia é uma mercadoria…Então, à medida que isso acontece, é o que vamos sentir em relação às pessoas que usam as plataformas. É esperado que façam isso. O ponto fora da curva seriam aquelas que não as usassem.
Também precisamos entender o abismo de desigualdades que constitui a nossa sociedade. Somos um país que, antes de promover a alfabetização, promoveu a inclusão digital. Isso, inevitavelmente, traz questões.
Apesar disso, tenho expectativa — e até uma certa crença, uma fé — de que nenhum trabalho está perdido. Sempre haverá trabalho a ser feito, no sentido de instrumentalizar melhor as pessoas para que elas façam as leituras das suas realidades.
Como filho da universidade pública, como você vê o papel da universidade pública no Brasil hoje em relação às questões, para além do ensino e da pesquisa, questões de gênero e de direitos humanos, por exemplo?
Guilherme Terreri: Bom, a universidade, para além da pesquisa, é — de muitas formas — um mecanismo de acesso à cidadania. Ela pode ser isso. Há tantos polos universitários que, quando você investe na abertura de um instituto federal, de um campus universitário ou, enfim, de novas unidades, isso transforma o mapa da cidade. E não é o mapa geográfico, mas o mapa afetivo, sensível, intelectual. Ter uma universidade em um lugar é mudar esse lugar para sempre — inclusive a história dos sujeitos daquele lugar. Quantas pessoas não vão deixar de sair de Alfenas à medida que Alfenas tem centros universitários? Esse é um exemplo pequeno, claro.
Há uma questão que precisamos pensar: o Brasil tem duas conquistas históricas — a universidade pública e o sistema público de saúde — que estão sendo dilapidadas e destruídas, independentemente dos governos que assumem a diligência da máquina federativa. Estamos em um governo que vence um governo de extrema-direita, com uma frente amplíssima, é verdade, com setores que, há 10 anos, eram chamados de fascistas e que agora “não são”, entre muitas aspas. O Alckmin, por exemplo, que já liderou a polícia mais letal, a do Estado de São Paulo e hoje é filiado ao Partido Socialista Brasileiro (PSB)
E, agora com esse governo, não é como se os cortes nos orçamentos tivessem parado. Muito pelo contrário: os cortes seguem; o congelamento segue; o enxugamento segue; o engessamento segue. Porque esse é o projeto macroeconômico do capital. A elite econômica brasileira deixa de ganhar dinheiro se há universidade pública e ganha rios de dinheiro se toda universidade for privatizada. Não dá para imaginar os donos de seguradoras de saúde lutando pelo SUS, certo?
Da mesma forma, não dá para imaginar que a dona do grupo Kroton de educação, desejasse que a universidade pública florescesse no país. São questões básicas de interesse. E precisamos entender que, para além dos interesses partidários, existem interesses suprapartidários que são macroeconômicos. São estruturais.
E aí, não podem conviver, em equilíbrio, universidade pública e iniciativa privada: em algum momento, um desses setores vai triunfar sobre o outro — e disso depende a luta política de um povo.
O Guilherme, cidadão e indivíduo, teme que a persona Rita Von Hunty supere o indivíduo?
Guilherme Terreri: Não, não. Eu tô c****do para isso. Se superar, melhor ainda. Só quero trabalhar, fazer, e f**-se. Vamos trabalhando! Vamos lutando e vamos torcer para as coisas melhorarem. Esperança, como o Paulo Freire pede da gente: organizar os nossos, se manter firmes, trabalhando e crente que as obras são possíveis e que é possível mudar a realidade também. Quem vai superar quem… ah, eu tô c***do para tudo isso.
Agora para fechar de verdade (risos). O que você acha da iniciativa do Movimento Gay de Alfenas de trazer você para falar com a nossa comunidade?
Guilherme Terreri: O Movimento Gay de Alfenas, ele tem um quarto de século de história. Isso é muito bonito, né? É impossível pensar o século XXI de Alfenas sem pensar o Movimento Gay de Alfenas. Então, acho que tem uma história linda. O Sander (Simaglio, presidente do MGA), que é uma das pessoas que está no movimento desde a sua fundação, é uma pessoa com compromisso, que se dedica, que pensa nos rumos da comunidade, acompanhando as gerações à medida que essa população vai se configurando e reconfigurando.
Eu acho sensacional eu poder ter um dedinho nessa trajetória.
Nota do entrevistador: Foi difícil terminar a entrevista, pois a vontade era conversar por horas com o Guilherme! Agradecemos ao apoio do Sander e do MGA que permitiu um tempinho na agenda para realização da entrevista.