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"A volúpia da prolixidade", por Eloésio Paulo | Jornal UNIFAL-MG

“A volúpia da prolixidade”, por Eloésio Paulo


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Você está lendo um livro de 500 e tantas páginas, o que já é um ato de coragem nestes tempos tão pouco convidativos ao dispêndio inteligente de tempo e energia. Então, depara com palavras que nunca imaginou que existissem: cebolórios, javevó, verecúndia, sincipúcio, folastria. Vai ao dicionário e constata, surpreso, que todas elas existem na língua portuguesa.

Essa é a principal ocorrência comum na leitura de O pássaro da escuridão, de Eugênia Sereno, publicado pela primeira vez em 1965, menos de dez anos depois de Grande sertão: veredas, com que fatalmente terá que ser comparado, ainda que em seu desfavor. Eugênia Sereno (pseudônimo de Benedita Rezende) é uma das maiores escritoras brasileiras, mas poucos a conhecem porque a leitura de seu único livro não é nada fácil — ainda que possa ser muito prazerosa. Nascida em São Bento do Sapucaí, município paulista localizado no Vale do Paraíba, a autora estudou música em São Paulo e foi, na maior parte de sua vida, uma pacata dona de casa.

O pássaro do título é a coruja, mencionada dezenas de vezes como “ave defuntólatra”, “paraninfa da morte” e outros apelidos relacionados à crendice de que ela anuncia mortes. A coruja paira sobre o marasmo que é a vida de Mororó Mirim, nome com que é designada a cidadezinha onde Eugênia Sereno passou sua infância. Esse “burgo sucumbido” ou “bronco nirvaninha rural” é não propriamente um cenário, mas verdadeira personagem coletiva. O interesse maior da narradora, que se assume claramente como alter ego da escritora, é encenar por escrito o marasmo da tragicomédia municipal que é Mororó — encenação retardada pelo riquíssimo inventário da linguagem local, cheia de reminiscências de um português carregado de arcaísmos já eliminados da fala cosmopolita dos grandes centros. Plínio Salgado, que era tio da autora, com agudeza notou o fato de essa volúpia da linguagem, resultando numa prolixidade que adia constantemente a narração, remonta à empreitada linguageira de Aquilino Ribeiro no Portugal ainda rural em pleno início do século XX europeu.

Há três ou quatro enredos, e difícil para o leitor é encontrar um denominador comum entre eles, alguma costura que os junte numa única trama. Esse nexo consiste quase unicamente no arrastar-se da linguagem que mimetiza o arrastar-se das vidas miúdas e sem grandes perspectivas de mudança. Era comum em cidades pequenas, observou Paulo Rónai: “Como nada acontece, tudo vira acontecimento” e, principalmente, matéria de fofoca e boato.  Assim também, como a mediocridade cotidiana exclui toda importância e transcendência, o único caminho da narradora é abrir picadas na linguagem, único lugar onde tais vidas miúdas podem tornar-se importantes ou transcendentes. E por isso a linguagem é o grande motivo de O pássaro da escuridão.

Felizmente, para o leitor, o repertório da autora é enciclopédico. Ela cita Virgílio e Homero de passagem, mas sua intimidade com os clássicos é comprovada mesmo pelo inventário, que em certos momentos parece tender ao infinito, de expressões em desuso e elaborações surpreendentes do idioma. Ao cogitar o suicídio, por exemplo, um personagem considera que “formicida é formidável de fulminante”, enquanto outro fica “destraído” ou assume certa “sereiedade respetuosa”. Badeca, um sedutor barato, vê-se ameaçado e fica a “desejar que a morte o desconvidasse”. Uma das distrações prediletas da narradora é brincar com superlativos, formando sintagmas como “alguma coisa muito péssima” e “olho tão grandíssimo”.

É em revirar as possibilidades do idioma que consiste o sistema de Eugênia Sereno. Não que isso a livre de escorregadelas gramaticais, e nesse ponto cessa a comparação com Guimarães Rosa. Mas, se o mundinho de Mororó é bem menor que o sertão do escritor mineiro, é possível que seja até mais esmiuçado. Afinal, elaborar um drama tenso e coeso não figura entre as possibilidades do material narrativo de O pássaro da escuridão.

Essa lacuna é, para o leitor que se abandone ao prazer do texto, fartamente compensada pelo desfile luxurioso da linguagem cheia de curvas e reentrâncias, cuja palavrosidade pomposa — convém confessar: às vezes, cansa — ecoa o vagar interminável do ramerrão interiorano. Pode ser que a gente se sinta no meio de uma conversa fiada à porta da botica, com todos os falantes possuídos de uma determinação barroca de nunca chegar ao âmago do assunto tratado. A procrastinação do relato tem graça, mas passa da conta quanto contamina a fala das personagens. A atenuante é que o tom da narração nunca se pretende verdadeiramente sério, está sempre cheio de ironia e jocosidade.

Quaisquer defeitos e excessos que o livro tenha, contudo, são contrabalançados por trechos como este:

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À bonitíssima Rolinha e ao seu requebro lânguido é que nos vamos, sem

mais minudêncis nenhumas. É o melhor da festa, esta mocinha Rolinha,

que, em criança, defecou pequenas dálias douradas, provincianas, no

peniquinho de porcelana de França: aí vem ela, airosa borboleta de airada

vida e belos olhos pretos, fatais, concupiscentes, como adiante se verá e o

que já é outro assunto espalhado e propalado por murmúrios humanos

entre esta montanhas: sentinelas cérulas, de cumes seculares, que parecem

coibir a existência e que semelham â noite imensas antas negras, imóveis,

em ponto grande, irremovivelmente atocaiadas na paisagem, a escutar o

carro de canto cansado, cantando a canseira calada do boi, mercê da

tristeza que tem.

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Rolinha engravida de um espertalhão que faz “funcionar a embusteria da louvaminhice”, os dois acabam se casando na cadeia. Parco drama, o furor uterino da moça é herança da mãe, uma Bovary dos trópicos, e abre a parte propriamente narrativa do romance, que somente no terceiro capítulo pega marcha de história. Mas a maior parte, quase metade dele, é dedicada à paixão serôdia que tira “Seu” Badaró da previsibilidade de um casamento católico e prolífico para jogá-lo nos braços da lúbrica mestiça Candoca, prostituta aos 16 anos. Esse caso é o que mais fornece pasto ao “boquejo de bocas danadas” de Mororó, cujas moças “ruidosas como granizos floricidas” têm idade para ser netas e até bisnetas do velho assanhado. Mas, se a “musga faz cosca”, mais ainda o apelo vaidoso do sexo adiado, e Badaró abandona o lar e abraça o ridículo, humilhando sua esposa já muito desgastada pelo ofício de criar 18 filhos. Tal “amor asmático”, no dizer do pároco local, faz do idoso uma ovelha que “enfermou de bucefalite aguda”.

A certa altura desse drama, o livro se torna capaz de chatear a valer, pois, a autora reconhecendo que está a tratar de uma “esquálida história” de adultério, retarda-se exageradamente o desfecho, principalmente no repisar do martírio de Dona Pureza, a mulher traída. Outras demonstrações de chatice ocorrem, em geral quando a facúndia do narrador contamina suas personagens, que se tornam inverossímeis de tão falantes: como poderia, por exemplo, um sujeito caracterizado como “pirâmide de burrice” ostentar vocabulário tão rico?

Voltando à comparação inescapável: o autor de Grande sertão: veredas ampliou desmesuradamente os limites geográficos do sertão mineiro, enquanto Eugênia Sereno estica seu tempo narrativo até perder razões e proporções. Felizmente isso resulta em desequilíbrio poucas vezes. Também O pássaro da escuridão, como o romance rosiano, é um livro para ser degustado como objeto de linguagem: quem tiver a pressa do leitor comum, que constantemente se pergunta “e depois?”, certamente vai desistir de ambas as leituras.

É inegável que Eugênia Sereno revelou-se dona de “fôlego sinfônico”, como disse o romancista português Fernando Namora. Muito exagerado, porém, é atribuir-lhe a “genialidade desconcertante” concedida por Bruna Becherucci.

Poucas obras foram tão elogiadas na época de seu lançamento e tão esquecidas pouco tempo depois. O pássaro da escuridão teve cinco edições e está, há décadas, merecendo cuidadosas releituras críticas. Os recursos mobilizados pela autora não chegam a ser complicados, difícil é usá-los com tal mestria. Nesse sentido, o alcance da arte de Eugênia Sereno como escritora de ficção — ressalvadas as falhas na fatura propriamente narrativa — torna-a muito mais merecedora de releitura do que várias autoras cujos parcos espólios têm sido, nos últimos anos, exaustivamente submetidos a um escrutínio cujo rendimento é muito mais ideológico do que crítico.

Onde encontrar: 
Livrarias e sebos virtuais

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