
É próprio do ser humano falhar e, a partir de seus erros, buscar aprender e melhorar; seja para evitar repeti-los ou para se tornar uma pessoa melhor. No entanto, a redenção e o perdão nem sempre são suficientes para nos proteger do julgador que mais nos conhece e mais nos pune: nós mesmos, impondo-nos o remorso mais pernicioso. É disso que trata a obra Koe no Katachi, de Yoshitoki Ouima: a redenção frente às consequências. O mangá foi inicialmente ilustrado e publicado em 2011, enquanto que a animação para o filme foi lançada em 2016. Esta resenha tratará da animação para filme.
A história de Koe no Katachi se desenrola em um cenário familiar e cotidiano, refletindo as relações que temos todos os dias. O protagonista, Ishida Shouya, é um jovem que, quando ainda criança, brincava com seus colegas de sala de maneira comum. Contudo, tudo muda quando uma nova aluna, Nishimiya Shouko, entra na turma. Shouko é surda, o que, embora não a torne fisicamente diferente, a coloca em uma posição de vulnerabilidade nas dinâmicas sociais. As chacotas, risadinhas e as falsas ajudas dos outros estudantes, feitas sem maldade, tornam sua vida escolar cada vez mais difícil. Shouya, um dos meninos populares da turma, acaba contribuindo para essa exclusão, intimidando-a e até mesmo arrancando o aparelho auditivo de Shouko, o que faz seu ouvido sangrar diante de todos. Ao perceber a gravidade de seus atos, Shouya se vê marcado pela culpa, que culmina na partida de Shouko. A partir daí, ele se torna o alvo de seu próprio remorso e o estigma social, sendo tratado como um monstro por seus antigos colegas. A história, de fato, começa com a jornada de Ishida, em busca da redenção e da tentativa de reparar o dano que causou a Shouko.
Ao compreender o mal, como afirma Paul Ricoeur (1985 apud Jeha, 2007), ele deixa de ser algo absoluto e se transforma em acidentes comuns ou justificáveis. No entanto, essa compreensão nunca apaga o sofrimento causado. Em Koe no Katachi, essa ideia se reflete nas tentativas de Shouya de buscar redenção. Sua conscientização do que fez a Shouko não apaga a dor causada, mas o leva a uma jornada de transformação pessoal. Em Koe no Katachi, a trama não se limita a mostrar como cada membro do grupo de amigos lida com o passado marcado pelo bullying. Ela coloca em destaque a jornada de Shouya, que, ao contrário dos outros, não consegue simplesmente ignorar as consequências de seus atos. O protagonista busca a redenção, aprendendo a língua de sinais e se isolando, negando-se a qualquer tipo de felicidade enquanto tenta lidar com a dor que causou a Shouko, punindo a si como ninguém outro fizera.
Negar a si próprio é negar até mesmo sua imagem. Se sentir mal ao ver o próprio reflexo não causou a ele mesmo a dor que teve ao ver, depois de anos, Shouko. Quando ambos se encontram, Shouya, com uma personalidade diferente, marcada por sua própria opressão, o fez agir de forma diferente, se aproximando aos poucos da jovem. Ao desenrolar da trama, pouco a pouco, os antigos amigos se reencontram. Ignorar, mudar, se ocupar a ponto de não ter que pensar em nada… diversas são as desculpas que as personagens se colocam, mas, se tratando de algo do cotidiano, não são atitudes incomuns. Enquanto uns se defendem, outros se mutilam, afinal, quando Kant (1985) diz “[…]quando se fala de valor moral, não é das ações visíveis que se trata, mas dos seus princípios íntimos que se não veem”(apud Costa, 2008), é no individual que o julgador nos pune, e no silêncio que nossa mente grita para nós mesmo.
Shouko, de outro ponto de vista, se nega às felicidades e ao bem estar visto que o bullying causou prejuízos a si e à própria família. Compensar um erro pesa tanto quanto compensar a própria existência? À autora não coube o papel de comparar, mas mostrar o quão prejudicial o bullying pode ser, para mais disso, como escolhemos lidar com as adversidades.
Em seu final, a autora nos mostra através de Shouya que, buscar redenção diz mais sobre nós mesmos e, ainda tão egoísta quanto se colocar como vítima. Shouko não é apenas alguém que representa um passado sombrio, mais que alguém que sofreu, mais que uma história: alguém. A partir da leitura da obra e do filme, os recomendo fortemente principalmente ao público juvenil, que tanto se pune, que tanto são senhores do tempo e da ansiedade. A busca pela redenção não apenas revela a culpa, mas traz luz às nossas próprias falhas e à capacidade de transformação. Em Koe no Katachi, vemos que a verdadeira redenção só pode acontecer quando reconhecemos as consequências de nossos atos, não como um caminho de punição, mas como uma oportunidade de aprendizado e mudança.
REFERÊNCIAS
COSTA, Celso Paulo et al. O conceito de mal em Paul Ricoeur. 132f. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-graduação em Filosofia, Universidade Federal de Santa Maria, RS, 2008.
JEHA, Julio. Monstros como metáforas do mal. In: JEHA, Júlio (Org.) Monstros e monstruosidades na literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. p. 9-31
RICOEUR, Paul. Evil, a challenge to theology and philosophy. Trans. David Pellauer. Journal of the American Academy of Religion, v. 53, n. 4, p. 635-648, Dezembro 1985.
________. Kant e Husserl. Revista Portuguesa de Filosofia, Braga: Faculdade de Filosofia de Braga, v. 61, n. 2, p. 355-378, 2005b.
YAMADA, Naoko (Direção). A voz do silêncio: Koe no Katachi. Kyoto Animation, 2016. Distribuição: Shochiku.
Paratexto editorial Resenha Crítica, produzido no âmbito da disciplina “Introdução à Editoração”, ministrada pela professora Flaviane Faria Carvalho, em parceria com os projetos +Ciência (FAPEMIG/UNIFAL-MG) e Laboratório de Estudos Editoriais (PROEC/UNIFAL-MG).

Luís Otávio Paes Oliveira é graduando em Letras na UNIFAL-MG, tem experiência na área de Letras, com ênfase em Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: PET (Programa de Educação Tutorial) Letras: conexões de saberes, literatura, modernismo, tradução e literatura inglesa. Atualmente, com foco em pesquisas relacionadas aos conceitos de monstros e monstruosidades na literatura e mal.
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