Concisa obra-prima

Lição profunda e tocante sobre a condição humana, A morte de Ivan Ilitch (1886) está muito longe de certas arengas superficiais que andam passando por ficção ultimamente. Seu autor, Liev (= Leão) Tostói, figura entre os maiores escritores de uma literatura que não os deu poucos – a russa. Seus monumentais romances Guerra e paz (1869) e Anna Kariênina (1877) são peças indispensáveis do patrimônio cultural da humanidade.

A extensão muito mais modesta não desmerece A morte de Ivan Ilitch. Costumam chamá-lo de novela, mas isso vem menos ao caso; o importante é que, com seu volume tão pequeno, essa narrativa apresenta um dos estudos mais completos sobre seu tema, que é o significado da morte como iluminação retroativa de toda a existência de um indivíduo.

Para o protagonista, o que valia na vida era viver de maneira “alegre, agradável e decorosa”. Com esse objetivo, ele consegue um emprego na burocracia judicial do Estado czarista, casa-se com uma moça bonita e tem alguns filhos. Logo, porém, seu casamento desanda e, pouco mais adiante, três dos filhos morrem. A infelicidade doméstica leva Ivan Ilitch a fazer do emprego e das partidas de baralho com amigos suas razões de viver. Fúteis razões, como deixa claro o narrador.

Mas essas coisas o leitor saberá depois do velório de Ivan Ilitch. É esse episódio que abre a narrativa, já apresentando a fina ironia de Tolstói acerca dos costumes burgueses transplantados para uma elite russa ridiculamente afrancesada; analisando os sentimentos dos mais próximos amigos do protagonista, o narrador vai expondo o fundo falso das relações sociais. Primeiro, as atitudes teatrais necessárias à atuação perante a viúva e demais pessoas presentes na casa do morto; de passagem, o arguto e incômodo comentário sobre o alívio que todos sentimos ao pensar que a morte não é própria, mas alheia – por maior que seja a consideração pelo defunto.

Ainda nessas páginas iniciais, ficamos sabendo que Ivan Ilitch havia morrido por causa de um banal acidente doméstico. O leitor que vagamente se lembrar das Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, não terá errado muito. Aliás, são várias as semelhanças entre a crítica social feita por Tolstói e a veiculada por meio da famosa ironia machadiana, ressalvado que esta é muito mais ferina que a do russo. Veja-se a propósito, o comentário do narrador sobre a decoração da nova casa do protagonista, preparada com esmero por ele mesmo para agradar à mulher e à filha:

Em essência, era o mesmo visto nas casas de todas as pessoas que não são
absolutamente ricas, mas querem parecer ricas e assim só se parecem com as
outras: tapeçaria damasco, madeira escura, flores, tapetes e bronzes escuros
e brilhantes – tudo aquilo que toda classe de gente de certo tipo faz para se
parecer com todas as pessoas de certo tipo. E a casa dele era tão parecida com
as outras que não dava nem mesmo para prestar atenção; mas, para ele, tudo
aquilo era especial de alguma maneira.

Ninguém estranharia se lhe mentissem ter sido o trecho acima recortado de uma obra machadiana.

Até aqui, estamos na metade do enredo. É a partir desse ponto que a doença de Vladimir Ilitch se manifesta, ganhando o primeiro plano a jornada interior do protagonista em direção à morte. Tolstói aplica-se em analisar a psicologia de um doente terminal, sua condição solitária e incompreendida: “E seria preciso viver assim, à beira da morte, sozinho, sem nenhuma outra pessoa que o entendesse e tivesse pena dele”.

Mas o drama íntimo do protagonista não oblitera a crítica mordaz, como nesta passagem referente à insensibilidade dos médicos que tratam o doente e à insegurança do próprio saber que lhes justificava os diagnósticos:

(…) Tudo era exatamente igual ao tribuna. A maneira como, no tribunal, ele fingia para o
 Réu era exatamente como o médico famoso fingia para ele.
O médico dizia: “Isso e aquilo indica que internamente o senhor tem isso e aquilo; mas
se isso não se confirmar pelos exames tal e tal, então é preciso supor que tem aquilo e
aqueloutro. Se não supusermos que é aqueloutro, então…” e assim por diante.

A evolução das dores de Ivan Ilitch é lenta, e paralelamente a ela evolui sua solidão e seu sentimento de abandono. Ele percebia que os outros, incluindo sua família e seus amigos mais próximos, fingiam não o saber condenado à morte em pouco tempo. O desespero chega a levá-lo a apelar para um ridículo tratamento por meio de “ícones”, que obviamente não produz qualquer resultado.

Às vésperas da morte, o protagonista aceita receber o sacramento da comunhão, e por sua vez finge para a mulher estar acreditando numa melhora de seu estado. Mas sua verdadeira conclusão havia sido, pouco antes disso, que toda a vida que vivera tinha sido errada: acreditando em noções completamente falsas do que fosse uma existência correta, ele havia, de fato, desperdiçado seus dias. É nesse estado de espírito que Ivan Ilitch se dispõe a esperar pela morte, e, quando ela finalmente ocorre, ele descobre que morrer era um grande alívio.

Fica claro que não estamos falando de um livro de autoajuda, certo? A não ser que o leitor se sinta ajudado por uma abordagem verdadeira e honesta do sentido da vida e da morte. Talvez a grande mensagem dessa obra de Tostói seja, para um leitor contemporâneo (especialmente se for um jovem), adverti-lo de que a morte não está tão longe quanto parece – que tudo, na condição humana, diz respeito a todos e a qualquer um.

Título: A morte de Ivan Ilitch
Autor: Lev Tolstói
Tradução: Boris Schnaiderman
Gênero: Literatura | Ficção
Ano da edição: 2009
ISBN-10: ‎8573263598
ISBN-13: 978-8573263596
Selo: Editora 34


Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

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