Escrita criativa

Alguns livros são úteis porque, de tão insatisfatórios, obrigam a gente a imaginar o que o autor poderia ter feito para que fossem melhores. É o caso de Escrita criativa – O prazer da linguagem (2008), de Renata Di Nizo, e Escrever com criatividade (2001), de Luciano Martins, este já na quinta edição. Eles contêm informações relevantes, mas o modo como estão dispostas mente à promessa sintetizada nos títulos. O leitor espera, provavelmente, que os trabalhos ajudem no desenvolvimento da originalidade na escrita, mas o que eles mais fazem é encadear ideias muito próximas ao senso comum e sem grandes evidências de lastro científico. Entretanto, há diferenças marcantes entre as duas obras.

Estão muito em moda os cursos de escrita criativa. Alguns deles, assim como iniciativas de artistas ou grupos de pesquisa, realmente podem funcionar como via para o desenvolvimento da criatividade, sobretudo se o pretendente já contar com algum talento inato e boa experiência de leitura. Porém, muitas iniciativas nessa linha têm com a auto-ajuda um parentesco que pouco as recomenda: quase só fica faltando chamarem a busca do texto criativo de “lenda pessoal”. Nesse aspecto os dois livros mencionados só não se equivalem pelas diferenças de qualidade textual e teor informativo, pois Escrever com criatividade é largamente superior.

A autora do primeiro título faz, várias vezes, a ressalva de que o caminho é árduo, de que tornar-se um escritor criativo exige dedicação, sobretudo, muito tempo reservado à leitura e ao exercício de inventar textos. Mas o conjunto do livro, assim como certas concepções teóricas a que ele adere, sinalizam uma acessibilidade enganosa; desvaloriza muito, por exemplo, as condições inatas, como se na capacidade criativa de um Machado de Assis ou de um Dostoiévski não entrasse como componente insubstituível a epilepsia, que decerto os predispunha ao devaneio e talvez à alucinação. O que, obviamente, não significa que ser portador desse distúrbio garante a alguém a condição de escritor criativo, mas quer dizer que existem variáveis fora de controle.

Ficamos imaginando, diante da ideia de que qualquer um pode escrever com originalidade seguindo meia dúzia de recomendações, pessoas como James Joyce e Emily Dickinson, Arthur Rimbaud e Clarice Lispector devendo suas intuições geniais a um protótipo de coach. Ou lembramos, caso isso esteja em nosso HD, aquela historinha sobre Mozart: um jovem lhe pediu que o ensinasse a compor sinfonias; Mozart respondeu que estudasse mais, ainda tinha muito o que aprender; então, o rapaz recordou-lhe que a primeira sinfonia do gênio havia sido composta ainda na infância; ao que Mozart observou: “Sim, mas não pedi a ninguém que me dissesse como fazê-la”.

A tese de Di Nizo é correta:

O mais honesto é reconhecer que nenhuma receita produz efeitos instantâneos. Articular
ideias com clareza e simplicidade requer prática e aperfeiçoamento contínuos. Pressupõe
acumular referências de mundo, resultado de intensa observação e curiosidade
permanente; acordar para o domínio da linguagem; levar a sério o hábito de ler e
escrever, se possível por prazer; complementar a formação cartesiana com altas doses
de imaginação; e, acima de tudo, fortalecer o binômio lógica e criatividade.

Exatamente. Mas tudo isso qualquer bom professor de redação vive dizendo. Por que de repente iria funcionar as pessoas o ouvirem ou lerem pela enésima vez, agora sob a rubrica da escrita criativa? Principalmente, como seria possível desenvolver a criatividade, quais os caminhos práticos para isso? Um pouco tardiamente (p. 104), a autora admite que “talento não se ensina”, mas terá parecido ao leitor que ela esteve justamente empreendendo tal ensinamento.

Faltam duas qualidades ao livro: profundidade e método. Os deslizes de linguagem até são poucos, nem chegam a ser dignos de nota. Mas onde está a receita para alguém “tornar-se curioso” (esqueçamos o “nato” que se segue ao predicativo)? Em lugar nenhum, porque ela simplesmente depende de condições que não se resolvem numa preceptiva tão rasa, pediriam uma qualidade de educação cada dia mais rara, aquela que começa por estimular os sentidos para depois se preocupar com a inteligência lógica. Os brasileiros nos tornamos uma nação de indivíduos auditivamente incapazes, só isso explicando o tipo da música que toca na maioria dos lugares aonde vamos; quanto aos outros sentidos, vêm-se atrofiando na mesma medida, desde que deixamos interpor-se entre nossas crianças e sua percepção do mundo esse onipresente (e, o mais das vezes desnecessário) smartphone, cuja “esmarteza” rouba a chance de que elas um dia se tornem pessoas humanas no sentido completo da expressão.

Também, pouca coisa há de menos criativo que iniciar um parágrafo com “cabe lembrar”. Ou seja, o próprio texto da autora não é nada original. E, no plano filosófico, falta-lhe principalmente reconhecer que existe um plano filosófico – e político, e estético: a escrita não ocorre num reino mágico e isolado da indigência mental dominante na sociedade brasileira nos últimos 30 anos.

A cada capítulo se renova a promessa de que, em algum momento, virão dicas práticas; surge até um segmento intitulado “O pulo do gato”. Mas, cadê o tal pulo? O que vem a seguir é uma rápida referência à primeira das propostas de Italo Calvino para o “próximo” milênio (que já chega a seu segundo quarto, não é?). Curiosamente, muitas pessoas que citam o mesmo livro do escritor italiano não passam da primeira proposta, a leveza – nossa autora, tampouco.

Para encurtar, haverá algum lucro para o leitor em saber um pouco mais a respeito dos hemisférios cerebrais, ou que existe um grupo francês, chamado Oulipo, dedicado à “literatura potencial”. Esse proveito, porém, não compensa o prejuízo de a autora dedicar uma única página a recomendações sobre ficção e poesia, mas nove páginas para explicar a etiqueta do envio de e-mails. Aquilo que provavelmente foi esperado pela maioria ao abrir o livro, temo-lo na forma de 24 “técnicas” (na verdade são exercícios) no capítulo final.

Não, o livro de Renata Di Nizo não foi usado aqui como sparring, e sim como exemplo do que são, em geral, os cursos de escrita criativa. É claro que deve haver exceções, mas o espírito costuma ser o mesmo daquele antigo “só é gordo quem quer”, enfim, de todos os modismos.

Afinal, o que seria escrever criativamente? Em mais um aspecto, a autora está certa (apenas não o pratica com muito afinco): primeiro se trata de escrever correto, e isso não envolve nenhuma ranhetice gramatiqueira, apenas estruturar textos com mínima lógica e rigor. Dominar o código é o básico, o que não significa enrijecê-lo em fórmulas ultrapassadas – exceto na caricatura feita pelos detratores da gramática.

Um escritor só pode ser criativo se não idolatrar noções excessivamente conservadoras de correção gramatical. Talvez o possa ser até mesmo ignorando amplamente o idioma. O improvável é que, nessa última condição, possa desenvolver a competência necessária à formalização do texto, sobretudo se estivermos falando de literatura. E parece que produzir textos literários é o alvo da maioria das pessoas que envereda pelo filão da escrita criativa; logo, seria necessário esclarecer primeiro a especificidade da forma literária. Não existe nem sombra disso em Escrita criativa – O prazer da linguagem.

A ideia era abordar aqui os dois livros, a título de amostra do que vem sendo divulgado no Brasil a respeito do tema. Como não foi possível discutir ambos, mesmo que rapidamente, esta resenha terá uma segunda parte, na qual se tratará de Escrever com criatividade.

Título: Escrita Criativa – O Prazer da Linguagem
Autora: Renata Di Nizo
Gênero: Língua Portuguesa
Ano da edição: 2008
ISBN: 9788532305268
Selo: Contexto


Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas.

LEIA TAMBÉM