O extremismo prospera em coletividades burras. Ora, a estupidez não é espontânea na maioria das pessoas, ou do contrário seria obrigatório descrer da Humanidade por princípio. Basta observar a agudeza mental típica das crianças, que, quando se atrofia na vida adulta, é resultado de uma educação entorpecedora da inteligência e da sensibilidade.
No cultivo da estupidez coletiva, é imprescindível o adubo da ideologia. Toda ideologia bem-sucedida em termos de adesão social depende, em primeiro lugar, de simplificações bisonhas daquilo que seja complexo. No limite, essas simplificações aspiram à unanimidade, pois o ideal de todo ditador (incluindo os projetinhos) é o silenciamento ou a eliminação de quem pensa e sente diferente. A questão fica resumida numa das conhecidas asserções do mais brilhante dramaturgo brasileiro: “Toda unanimidade é burra.”
Nelson Rodrigues não poderia escrever em nenhum veículo de comunicação importante do Brasil atual. Seria totalmente inconveniente para o consenso social em vigor, por exemplo, o que ele certamente diria a respeito do “sertanejo” “universitário”, esse subgênero pré-musical que parece ser um dos principais adubos da estupidez nacional contemporânea, a mesma que leva mamãezinhas mimadas a reivindicar o assento à janela do avião para seus filhinhos que não podem ouvir um não.
O sintagma “sertanejo universitário” é uma contradição em termos, e a simples admissão de tal paradoxo como coisa dada já diz muito sobre a inteligência de quem a assume. Não deve ser esse o caso de Waldenyr Caldas, pois ele não se propôs atualizar pelo espírito da época seu livrinho O que é música sertaneja (1987), publicado pela coleção Primeiros Passos, da lendária editora Brasiliense.
O breve histórico que o pesquisador faz daquilo a que nos acostumamos a chamar “música sertaneja” explica bastante – embora de modo indireto, refratado – sobre a fragilidade, que ultimamente temos sido forçados a constatar, dos fundamentos da democracia brasileira. Um livro como o seu, exatamente por não ter incorporado os “cowboys do asfalto” (assim batizados por intérprete mais recente do fenômeno), ajuda a entender a relação entre anticultura e política no Brasil dos últimos 30 anos – mas apenas para quem tenha alguma memória do processo, dele tenha participado ou vá estudar com seriedade como se deu e dá tal relação.
Waldenyr Caldas é professor titular da USP. Na época em que publicou sua obra aqui referida, era um dos raros estudiosos do tema. Sua introdução a ele, obrigatoriamente ligeira devido aos objetivos da coleção Primeiros Passos, resume a história da “música caipira”; explica, também de modo ligeiro, a passagem para o “sertanejo”; e faz uma lista dos aspectos comuns entre os dois gêneros cancionísticos. Demonstra, por exemplo, que a canção caipira paulista, inicialmente difundida pelos esforços de Cornélio Pires, ainda na década de 1930, tinha fundamento folclórico, ao passo que a música sertaneja surgiu por meio da criação de um produto especificamente voltado às periferias urbanas. É uma rica e interessante história, mas ao fim o autor diz que o gênero, “hoje” (quer dizer, meados da década de 1980), já não tinha mais nada a ver com o meio rural, e que “de sertaneja, mesmo, sobrou apenas o nome”.
Essa rápida conclusão contradiz em parte sua análise anterior no próprio livro. Caldas havia começado verberando os críticos do sertanejo e dando sonoros parabéns ao grande público por não lhes dar ouvidos. Havia, é claro, preconceito contra um gênero musical que soava tosco e primário em vários aspectos; mas o raciocínio é falacioso em suas afirmações de que não importa a opinião de um crítico, o que vale é o “prazer de desfrutar”, e de que os critérios de bonito e feio mudam com o tempo. Os exemplos dados não são muito convincentes, pois o autor desconsidera que o declínio do samba-canção e da Jovem Guarda, invocados a título de comparação, deveu-se a uma atualização estética da inteligência brasileira – a atingir todos os campos da arte nos anos 1950 – e ao próprio desgaste daquelas fôrmas musicais pelo excesso de repetição. Algo muito semelhante ao que Caldas alegaria depois a respeito do próprio sertanejo, que entrou a buscar inspiração no country americano.
Aliás, o próprio livro pode ser desclassificado pelo critério da atualidade, pois nem menciona Chitãozinho e Xororó, que são o marco zero de uma mutação resultante no oximoro sertanejo universitário, expressão hoje pronunciada sem nenhum susto pelas pessoas mais cordatas. Além de terem feito uma caricatura musical do que era genuíno em Tonico e Tinoco, os dois irmãos nunca mais subiram na sua Toyota em ponto morto (antigamente, Toyota era só a velha Band com motor de caminhão) sem estar devidamente caracterizados como o que hoje se costuma chamar agroboys – pelo menos antes de se tornarem agro-old-boys. Aí começava uma aliança política, talvez até insconsciente em alguns casos – mas não para quem mandava nas gravadoras –, de tristes resultados para a inteligência brasileira. Se Léo Canhoto e Robertinho haviam ensaiado (como Caldas explica) a americanização do sertanejo, ninguém a impulsionou tanto como José e Durval, com seu fio de cabelo no paletó etc.
Não é crime alguém ganhar dinheiro com produtos da indústria cultural; ou, então, houvesse cadeia! É que a guinada cauboyzante resultou num processo de tendência monopolista indisfarçável: agora, aonde quer que você vá, é obrigado a ouvir a derivação “universitária”, feita, ao que tudo indica, não por pessoas com título acadêmico ou vivência rural, mas sim convictamente determinadas a explorar a floração selvagem dos hormônios juvenis. Sem contar que, pelo caminho, foram pululando duplas as mais descartáveis e identificadas com o que havia de mais atrasado no país – basta lembrar aqueles outros dois irmãos cantando “Tapas e beijos” em pleno Palácio do Planalto, numa cena icônica do curto e ruinoso reinado collorido. Aquele palácio, sim, construído por senhor apelidado “presidente bossa-nova”.
O crime é que o esvaziamento cultural da juventude brasileira foi, de um lado, permitido, e de outro, planejado. Permitido por uma ideologia de tamanha complacência que chegou ao puro e simples elogio das vantagens de ser ignorante. Planejado por empresários do mercado do disco e dos shows (de preferência, bancados por prefeituras sem dinheiro para qualquer ação cultural digna do nome) que lucraram e lucram bilhões com a voga do sertanejo de aspas, já que fala mais de baladas etílicas e infidelidades amorosas do que de qualquer tema ligado à vida no campo. E estão certamente faturando ainda mais na medida em que alguém, bem antediluviano, fica de repente chocado ao presenciar uma plateia de estudantes universitários sabendo de cor (e adorando) uma canção de tamanha pobreza e simploriedade como “Evidências”, tornada notória pelos ditos José e Durval. Quando os oximoros ganham sentido aceito pela maioria, temos em ação o dialeto do fascismo – como ensina Victor Klemperer em LTI – A linguagem do Terceiro Reich (2009) –, sendo mais assustador o fato de que nesse novo consenso se integra a maioria das pessoas autodefinidas como de esquerda, desfazendo de vez a velha ilusão de que basta protestar contra o “sistema” e ir assistir ao filme Ainda estou aqui para merecer o título de “progressista”.
De gustibus non est disputandum, já se dizia em Roma. Gosto não se discute? Claro, não é possível discutir gosto com quem não sabe o que seja gosto. Gosto supõe o conhecimento de várias possibilidades de gostar, e é por isso que a gente ensina os bebezinhos a comer beterraba, que tenderão a não apreciar quando crescerem, mas sem dúvida faz bem para a saúde, ao contrário de salgadinhos amarelos ultraprocessados compostos, na melhor hipótese, de sabugo moído. O crime está em havermos formado duas gerações de jovens praticamente sem nenhum repertório musical além do que é posto no cocho pelos gerentes da anticultura planejada. Essa miséria intelectual explica muito sobre os recentes eventos políticos brasileiros, movidos a ignorância mais do que tudo. Porque cultura não é perfumaria; a sua falta implica uma série de outras carências totalmente implicadas na atual crise de identidade do Brasil, com a qual só fica feliz quem não consegue imaginar o que virá em seguida. Ao trailer, já assistimos.
Título: O que é música sertaneja
Autor: Waldenyr Caldas
Gênero: Arte | Música
Ano da edição: 1987
ISBN-10: 8511011862
ISBN-13: 978-8511011869
Selo: Editora Brasiliense
Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.
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