Entre seus deslocamentos e viagens entre o Brasil e a França, bem como nas postagens e interações pelo seu canal no YouTube ou pelas páginas do Facebook, a jornalista, pesquisadora e autora brasileira Mazé Torquato Chotil (Maria José Soares Torquato), nascida em Glória de Dourados, Mato Grosso do Sul, que morou em Osasco-SP e vive em Paris desde 1985, se tem destacado por divulgar a sua literatura e a literatura de autores de língua portuguesa na imprensa brasileira e francesa, mas, também, por promover a cultura brasileira, sobretudo a literária, inclusive publicando em francês ou em edições bilíngues alguns dos seus ensaios, romances e estudos memorialísticos como “Ouvrières chez Bidermann – Une histoire, des viés” (2010), “L’Exil Ouvrier – La Saga des Brésiliens Contraints au Départ” (2015), “Lembranças do Sítio – Mon enfance dans le Mato Grosso” (2022), por citar alguns dos seus mais de 14 livros já publicados.

Com assuntos que abordam as operárias das indústrias da confecção e de trabalhadores exilados na França, Mazé Torquato Chotil debruçou-se, inicialmente, com questões sociais decorrentes dos estudos de sua pesquisa da tese de pós-doutorado defendida na École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris). Segundo a autora, durante as décadas de 1960 e 1970, a França propicio uma abertura que acolheu a muitos exilados políticos advindos de ditaduras militares de países latino-americanos como Argentina, Brasil, Chile e Uruguai, como foi o caso de José Ibrahim, o líder sindical brasileiro, considerado um dos responsáveis por organizar os primeiros atos de greve de Osasco, em São Paulo, 1968, durante o regime militar no Brasil, tendo sido o fundador da Casa da América Latina no país gaulês, em 1976. Deste modo, a partir de depoimentos de José Ibrahim, de entrevistas com familiares, amigos e companheiros de militância, surgiu a biografia do dirigente, escrita pela autora, intitulada: “José Ibrahim: o Líder da Primeira Grande Greve que Afrontou a Ditadura” (2018).
No entanto, Mazé Torquato Chotil, filha de nordestinos vindos do Sul do Ceará para colonizar uma área territorial conhecida com o nome de Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND), viveu até os seis anos de idade em um sítio, vivência que foi marcada pela sua experiência de vida no sul do Mato Grosso, um fato relevante que levou a autora a ter uma conexão sensível com as lembranças de sua infância e de sua terra em meio à natureza, propiciando condições criativas para escrever sobre essa experiência baseada em acontecimentos cotidianos de sua vida, assim como ela mesma confidenciou: “passei meus primeiros anos em contato com a natureza, comendo o fruto da terra, bebendo a água coada do córrego ou do poço, sentindo a felicidade dos meus pais quando a chuva vinha na boa época e a colheita se apresentava boa.” Essa experiência permitiu que a autora pudesse desvendar de forma engenhosa e criativa o universo rural que a rodeou, recheado de boas histórias e belas recordações, possibilitando a escrita e surgimento dos romances “Lembranças do Sítio” (2012), “Minha aventura na colonização do Oeste” (2014) e “Lembranças da Vila” (2017), que fizeram à Mazé dialogar com a experiência sul-mato-grossense, trazendo à tona vivências e memórias instigantes para a compreensão de uma identidade local.
Para a autora, com uma série de outras publicações como “Minha Paris Brasileira” (2010), “Trabalhadores exilados” (2019), “Na rota de traficantes de obra de arte” (2019), “Maria D’Apparecida – Negroluminosa voz” (2020), “No Crepúsculo da vida” (2021), “Jornal de bordo: Brasil de 2021” (2022), “Nascentes Vivas: para os povos Guarani, Kaiowá e Terena da Reserva de Dourados” (2022) e “Mares agitados: na periferia dos anos 1970” (2024), ler amplia o mundo, permite viajar sem sair do lugar, estimula o pensamento crítico, melhora a linguagem e a comunicação, desperta empatia e preserva a memória e a identidade, estimulando a imaginação, a interpretação e a criação mental. Foi a partir dessa experiência enriquecedora e contato presencial com a autora na Feira de Livros de Poços de Caldas (FLIPOÇOS) em 2023, e depois em 2024, que nos deparamos com a obra “Na sombra do ipê” (2022) que, de modo sucinto, redesenhamos a seguir, com base em uma leitura intersemiótica.
“Na sombra do ipê”, tem como fio condutor o câncer de uma grande amiga de infância, o qual evoca a lembrança da mesma doença que acometeu outros amigos e a própria autora, com descrições detalhadas dos embates contra ela, de tempo que passa, de amor à vida situada em dois universos: Paris, onde mora, e lugares do Mato Grosso do Sul, onde nasceu a autora. Contornando o tempo cronológico e fugindo ao espaço linear, a autora estabelece muito habilmente um diálogo à distância entre ela e sua amiga de infância, entre o passado e o presente. Um diálogo que permite à autora/personagem de “praticar um olhar interior”, de “dizer coisas pessoais” que, como aprendeu, “não se dizem a outros”. Tempo presente e tempo passado no vilarejo, no bolicho, onde a personagem tem sede de conhecimentos. Pequenos episódios cotidianos, como “esquentar o sol”, a morte súbita do pai da amiga e, mais tarde, o diagnóstico da doença dela, os percalços do tratamento e a notícia trágica de sua doença terminal.

Ainda que algumas lembranças evocadas em conversas com a amiga doente sejam tristes (como a do velório do pai dessa última), impera em todas elas o sentimento terno que as unia, avivando uma narrativa que gira em torno do significante “câncer”, além de suaves recordações da mãe. “Na sombra do ipê”, revela-se uma obra de fina sensibilidade, em suas mais recônditas reminiscências, onde a autora trava um monólogo interior, no fluxo da consciência, estilo tão afeito à literatura memorialística. Divide com sua amiga seu alter ego, o que lhe licencia confessar seus segredos mais recônditos… Realidade ou ficção?
Sem dúvida, “Na sombra do ipê”, cuja capa de cor amarela foi elaborada por sua filha, Clara Chotil, possui uma estrutura original que foge à linearidade das narrativas impregnadas de autobiografia, numa linguagem simples e coloquial, sem derramamento sentimentalista, mas não carente de poesia que podemos considerar um instigante livro de memórias que transita entre a realidade e a ficção, e que até pode funcionar como uma “terapia”, sem que seja ou trate, necessariamente, de uma condição de autoajuda. O ipê, aludido no título, uma palavra de origem tupi que significa “arvore cascuda”e tem uma valiosa simbologia que trouxe ainda mais força ao romance. A escritora descobriu que o “mito é de uma árvore potente e que o estar embaixo dela pode curar física e mentalmente”. Mas, também, o ipê é conhecido pela beleza de suas flores brancas, amarelas, rosas, roxas ou lilás, e sua floração exuberante, mesmo em ambientes adversos, representa a capacidade de superar desafios e encontrar a beleza em tempos difíceis, e o ipê-amarelo, particularmente, está intimamente ligado à ideia de renovação, esperança e até de resiliência, estando implícito na urdidura do enredo singular da Mazé.

Título: Na sombra do ipê
Autora: Mazé Torquato Chotil
Gênero: Literatura | Drama | Monólogo
Selo: Patuá
Ano da edição: 2022
Páginas: 97

Ítalo Oscar Riccardi León é professor do curso de Letras/Espanhol da UNIFAL-MG desde 2009. Formado em Letras e Literatura, com especialização em Comunicação e Semiótica, o docente é mestre em Educação e doutor em Estudos Literários. O docente participou da organização do documentário Histórias de quando a água chegou… Um resgate literário/cultural dos relatos orais surgidos com a construção da barragem de Furnas e da edição comemorativa de 10 anos do Cineclube UNIFAL-MG: espaço de formação cinematográfica, cultura e cidadania. Em parceria com o Jornal UNIFAL-MG, atualmente, coordena esta coluna literária Literatura pelas Bordas.