Nosso primeiro contista

Para um jovem que imagina – é bem comum – estar reinventando o mundo, ler Noite na taverna (1855) pode ser um bom negócio. O livro de contos de Álvares de Azevedo é um pequeno tratado de transgressões que ainda assustam muita gente: necrofilia, incesto, canibalismo, blasfêmia. Apresenta o leitor a certas virtualidades do humano que existem pessoas por aí pensando serem grandes novidades.

O poeta, que morreu antes de completar 21 anos, foi um dos grandes do nosso Romantismo e o primeiro contista brasileiro. Sozinho, reunia mais talento que toda a poesia romântica portuguesa – somada. Seus breves dias foram vividos com a intensidade possível a um dileto filho da burguesia paulistana da primeira metade do século XIX: em certo gênero de boêmia que era mais livresca do que real. O jovem Manuel Antônio provavelmente morreu virgem e, a julgar pela insinuação de Mário de Andrade, tinha impulsos homossexuais que não tiveram tempo de aflorar à consciência nem à obra literária: ficaram em algumas cartas à irmã, dando conta de bailes em que o rapaz se interessava por modelos de roupa feminina e teria chegado, travestido, a iludir amorosamente um diplomata europeu.

Em Noite na taverna, tanto como nos poemas da Lira dos Vinte Anos (1853), Álvares de Azevedo expõe uma imaginação feita somente de leituras. No caso, principalmente leituras da vertente “gótica” do Romantismo, aquela que expõe uma intrigante preferência pelo lado noturno do ser humano. Nessa linha, os principais mestres do contista parecem ter sido Shakespeare, cujo Hamlet dado a colóquios mórbidos havia sido, em certo sentido, um romântico dois séculos adiantado, e o alemão E.T.A. Hoffman, autor de certos “contos insensatos” depois reclassificados como “fantásticos”.

O ultra-romantismo (viva o hífen assassinado pela reforma homográfica) é o lado dissidente da estética que predominou no início do século XIX. Contra a ereção – sic, remeto-vos ao “Tolicionário” flaubertiano* – de uma vida social organizada em torno dos valores burgueses, meio resultantes da fagocitose do lado ideologicamente conveniente das religiões cristãs, os poetas tresloucados brandiam certa nostalgia da vida aristocrática e, na falta de consultórios de psicanálise, vertiam em caudalosa poesia suas ânsias e desesperos: eram, antes de tudo, indivíduos incapazes de adaptação à vida regulada pelo torniquete cada vez mais apertado do capital em torno ao pescoço do trabalhador.

Tanta revolta se expressava, muitas vezes, por uma atração por tudo que fosse capaz de assustar a sociedade bem-pensante, numa antecipação do lema moderno épater le bourgeois (“chocar o burguês”, naturalmente não no sentido galináceo). Daí a temática esdrúxula de Noite na taverna, transplantada diretamente do imaginário das elites europeias. A ideologia burguesa é feita do que os lógicos antigos chamavam contradictio in adjectio, contradição em termos, por isso já nasceu em crise; ocorre que o lado oficial do Romantismo, comprometido com a organização produtiva dos estados nacionais, preferia e continua preferindo – pois ainda temos sociedades um pouco românticas – recalcar a crise. Ou, pensando bem, talvez hoje a crise de identidade tenha virado a principal mercadoria simbólica, “cultural”.

Não o jovem Álvares de Azevedo – com ele, nada de recalque. Seus protagonistas de nomes europeus (Bertram, Solfieri, Hermann, Gennaro, Johann) aparecem, na cena inicial, envolvidos numa discussão típica da torre de marfim**. No meio de uma noite de tempestade, entremeiam solenes e ao mesmo tempo cínicos discursos à bebedeira, da qual também participam umas vagas mulheres. Vagueza que denuncia a inexperiência amorosa do autor, muito diferente do que se passou com Castro Alves e Fagundes Varela, poetas românticos boêmios a valer.

Se as falas são impregnadas de retórica, elemento bastante desconfortável para um leitor atual, questionam geralmente as verdades estabelecidas no arremedo de sociedade burguesa que havia no Brasil da época. Um dos personagens diz não acreditar em Deus e postula que a Bíblia “mente mais que as miragens do deserto”. É nesse espírito que Solfieri se propõe narrar aos companheiros uma recordação de seu passado. Antes de “ouvi-la”, porém, o leitor deve lembrar-se de que os figurantes da cena estão bêbados, e talvez o estivesse o próprio escritor – no ato de redigir esses contos.

O livro consiste no encadeamento de sete narrativas, cada qual a cargo de um dos participantes da “orgia” mencionada (mais do que descrita) no capítulo inicial, intitulado “Uma noite do século”. Na primeira delas, Solfieri relata seu amor pela jovem que, encontrada morta dentro de uma igreja, é ressuscitada por uma relação sexual com o narrador, mas morre “de novo” dois dias depois, sendo sepultada num túmulo construído no quarto do rapaz. A morte e seus vários espectros rondam o tempo todo Noite na taverna.

Vem a seguir um caso cheio de adultérios e assassinatos, narrado por Bertram. A história culmina num naufrágio e em dois episódios de canibalismo. Outro conto, cujo protagonista é Gennaro, consiste numa confissão de infâmias encerrada pelo assassinato seguido de suicídio. E por aí vamos, até chegar ao dramalhão de circo em que, no arremate da tremenda embrulhada que havia começado por um duelo, o narrador descobre ter possuído sexualmente a própria irmã, depois virada num “anjo perdido da loucura”, leia-se prostituta, e assassinado o irmão.

A coletânea não deixa de ser fascinante, mas sobretudo pela ousadia do poeta ao tratar, num tempo e num lugar acanhados como o Brasil da época do Império, de temas tão desusados. Obras assim poderiam até, naquele tempo, fazer o sucesso de escritores europeus e americanos, mas a recente monarquia tropical ainda não contava com suficiente número de leitores ansiosos por aquele gênero de catarse.

Quanto à qualidade dos contos, porém, não é possível deixar de notar que foi afetada pela inexperiência do escritor. Além das falas inchadas de retórica, eles são perpassados por óbvias fantasias virginais como a de que uma virtuosa duquesa italiana pudesse ser, dois palitos, convencida por um poema a fugir com o apaixonado por quem acabara de ser raptada (mesmo sendo um pleonasmo, vai o esclarecimento: tendo sido, por consequência, violentada). Ainda não haviam inventado a “síndrome de Estocolmo”…

Álvares de Azevedo já fazia muito de ser o rapaz brasileiro mais esquisito de sua época. Não lhe exijamos que tenha sido também o primeiro grande contista brasileiro, proeza que Machado de Assis conseguiu lá pelos quarenta anos de idade.


*Ou “Dicionário das ideias aceitas”, apêndice do romance Bouvard e Pécuchet (1881)

**Turris eburnea, expressão latina que se refere aos autores cujas obras não demonstram qualquer interesse pela vida e pelos problemas das pessoas comuns.

 

Título: Noite na taverna
Autor: Álvares de Azevedo
Gênero: Ficção | Contos
Ano da edição: 2019
ISBN-10: 8594318944
ISBN-13: 978-8594318947
Selo: Principis


Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

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