“O decálogo” da Szymborska

Wisława Szymborska nasceu em 1923 em Bnin, na Polônia, e morreu em 2012. (Fotomontagem: Reprodução)

Parece ter-se criado, no senso comum, a percepção de que a literatura vem perdendo crescentemente sua importância social. No entanto, cresce a demanda pela competência em escrita, aparente no mesmo passo em que ganha cada vez mais crentes a ideia de que, num futuro próximo, todas as habilidades intelectuais e artísticas que distinguiram o ser humano do restante dos animais terão sido definitivamente usurpadas por essa nova panaceia apelidada de inteligência artificial.

No que tange à competência em escrita – o restante pede uma discussão muito mais longa –, existe uma tradição de preceptivas visando orientar o fazer literário que vem de Aristóteles e Horácio até, para citar exemplos modernos, o ensaio “Tradição e talento individual”, do poeta norte-americano T. S. Eliot, e o famoso “Decálogo do perfeito contista”, do escritor uruguaio Horacio Quiroga. Decálogo bastante imperfeito, por sinal. Se não existe uma preceptiva completa, a que se pode deduzir do livro Correio Literário – Ou como se tornar (ou não) um escritor, recentemente traduzido no Brasil, é uma das melhores. Sua autora é Wisƚawa Szymborska (pronuncia-se “Vissuava Chembórska), polonesa que ganhou o Nobel de Literatura em 1996 especialmente devido à sua excelente poesia, também já bastante traduzida em português.

Esse volume magro e bem-humorado, porém muito denso em voltagem crítica, resulta da recolha de respostas dadas por Szymborska aos aspirantes a escritores que enviavam originais candidatos à publicação no jornal Vida Literária, do qual a escritora era um dos editores. A maioria das respostas timbra por uma ironia que chega a ser cruel, e por isso o livrinho é leitura leve e divertida. Mas, acima de tudo, os conselhos dados em tom de gozação formam um esboço de poética – pelo menos, uma antipoética – que pode ser bem útil a quem pretende se iniciar na vida literária.

Aqui vai um resumo deles preparado pelo resenhista, que leciona a disciplina Escrita Criativa no curso de Bacharelado em Letras/Português da UNIFAL-MG. Quando se julgou mais apropriado, foi simplesmente transcrito o trecho correspondente do Correio Literário, cuja tradução foi feita com apuro por Eneida Favre – estão a demonstrá-lo as notas de rodapé. Na falta de uma palavra correspondente a decálogo e adequada a uma lista com 30 itens (“triandálogo” soaria muito esquisito), manteve-se no título da resenha a metonímia, as aspas querendo dizer que este “decálogo” tem o triplo de conselhos daquele de Quiroga ou do outro, mais antigo, com que Moisés baixou do monte Sinai.

  1. “Em primeiro lugar, deveria se preocupar se tem algo a dizer.”
  2. A confissão das mágoas que o autor carrega pode ser uma ótima terapia, mas nunca será suficiente para que um texto possa ser considerado literário.
  3. É preciso ter um plano B. Ser escritor depende de tantas variáveis como ser jogador de futebol.
  4. Não leve a sério a opinião de ninguém com razões afetivas ou interesses fortes o bastante para evitar chatear você.
  5. Rimbaud escreveu poemas geniais aos 16 anos, mas, até prova em contrário, você não é a reencarnação de Rimbaud.
  6. “A poesia (fosse lá o que mais pudéssemos dizer sobre ela) é, foi e será um jogo, e um jogo sem regras não existe. Sabem disso as crianças. Por que os adultos se esquecem?”
  7. “(…) na juventude tudo ainda é possível. Até mesmo um deles se tornar um escritor de verdade.”
  8. Se você ainda não viveu, é difícil que consiga escrever algo literariamente válido e original. A literatura é sobre a vida e a condição humana.
  9. Nenhuma crítica deve ser encarada como sentença irrecorrível, mas qualquer uma (mesmo as mais azedas) podem ser diretrizes ou elementos informativos da imprescindível autocrítica.
  10. A melhor crítica é sugerir a leitura de textos muito superiores, nos mesmos quesitos, àquilo que alguém pensa ter escrito.
  11. Nos “casos de extrema escrevinhação”, a extrema vaidade costuma ser a capa da extrema ignorância.
  12. É virtualmente impossível, para quem não tenha aquilo que há poucos anos ainda era chamado de cultura geral, escrever algo decente em termos de literatura.
  13. A poesia é a síntese verbal de uma experiência interior intensa. A prosa é outra coisa, mas costuma sair melhor quando o prosador é, ao menos, um bom leitor de poesia.
  14. A prolixidade é um mau presságio. Detestar poesia, idem.
  15. Anotações enfileiradas no papel sem nenhum senso de estrutura não são poesia. Existe uma retórica do poema que precisa ser pensada, ele não surge por um passe de mágica.
  16. “Por acaso é uma afronta dizer a um homem louro que seus cabelos não são castanhos, se, além disso, ele mesmo fez a pergunta?”
  17. “A falta de talento literário não é nenhuma desonra. Acontece a muitas pessoas sábias, esclarecidas, de caráter nobre e também extremamente talentosas em outras áreas. Quando escrevermos que um texto é ruim, não temos a intenção de ofender ninguém, nem de lhe tirar a fé no propósito da existência.”
  18. Conversar com pessoas de verdade, e pessoalmente, costuma ajudar bastante a imaginar como as personagens de um romance ou de um conto podem falar sem que pareçam robôs ou marionetes.
  19. Não se pode opinar sobre um texto ilegível: “Por que temos de querer ler isso, se tudo indica que nem o autor se interessou em passar o texto a limpo?”
  20. O tema não constitui, por si só, um bom texto literário. Literatura é forma, e nos casos mais felizes se dá o casamento perfeito entre forma e conteúdo.
  21. Desconhecer a tradição literária e as normas gramaticais implica, sim, uma distinção: a distinção do autor como ignorante que repete o que já foi feito muitas vezes e/ou exibe um manejo tosco de seu principal instrumento de trabalho.
  22. Não rimar é tão difícil como rimar. Ou tão fácil.
  23. “É preciso descrever o mundo continuamente, porque, afinal, ele não é o mesmo de tempos atrás, nem que seja pelo fato de que não estávamos nele antes.”
  24. Não é nada promissor escrever sobre coisas que você não conhece, mas isso não quer dizer que aquelas já conhecidas sejam suficientes.
  25. “Como se tornar um literato? O senhor nos faz uma pergunta problemática. Exatamente como o menino que perguntou como são feitos os bebês, e, quando a mãe lhe disse que depois explicaria, porque naquele momento estava muito ocupada, ele insistiu: ‘Então me explique pelo menos como se faz a cabeça’… Pois bem, nós também vamos tentar explicar pelo menos a cabeça: é preciso ter um pouco de talento.”
  26. “no fundo, são os genes que decidem”.
  27. É preciso saber um pouco de teoria. Que, porém, ela nunca se torne mais importante que o próprio texto literário – nem que você deseje ser “apenas” professor de literatura.
  28. “Mas precisaria ainda reescrever cada continho pelo menos cinco vezes. A propósito, gostaria de lembrar que Tchekhov reescrevia seus textos sete vezes e Thomas Mann fazia cinco correções (nesse meio tempo inventaram a máquina de escrever).”
  29. “A pressa, salvo em raríssimos casos, cria produtos semiacabados. Pois qual é a primeira coisa que se apodera da caneta? É o que já está pronto de antemão, são, antes de tudo, as banalidades, as convenções ultrapassadas e o páthos de quarta mão. Um impulso sincero de nada serve se é expresso por um lugar-comum.”
  30. “Que tal tratar o poema como uma escultura e fatigar-se um pouco até que o pensamento atinja sua forma final e única?”

Título original: Correio Literário – Ou como se tornar (ou não) um escritor
Autora: Wisława Szymborska
Tradução: Eneida Favre
Gênero: Ensaios | Correspondências
Ano da edição: 2021
Páginas: 104
Selo: Editora Âyiné

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Entre 2022 e 2024, foi colaborador do Jornal UNIFAL-MG, onde assinou a coluna semanal exclusiva Montra, dedicada à crítica e à divulgação de produções literárias.

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