
Parece ter-se criado, no senso comum, a percepção de que a literatura vem perdendo crescentemente sua importância social. No entanto, cresce a demanda pela competência em escrita, aparente no mesmo passo em que ganha cada vez mais crentes a ideia de que, num futuro próximo, todas as habilidades intelectuais e artísticas que distinguiram o ser humano do restante dos animais terão sido definitivamente usurpadas por essa nova panaceia apelidada de inteligência artificial.
No que tange à competência em escrita – o restante pede uma discussão muito mais longa –, existe uma tradição de preceptivas visando orientar o fazer literário que vem de Aristóteles e Horácio até, para citar exemplos modernos, o ensaio “Tradição e talento individual”, do poeta norte-americano T. S. Eliot, e o famoso “Decálogo do perfeito contista”, do escritor uruguaio Horacio Quiroga. Decálogo bastante imperfeito, por sinal. Se não existe uma preceptiva completa, a que se pode deduzir do livro Correio Literário – Ou como se tornar (ou não) um escritor, recentemente traduzido no Brasil, é uma das melhores. Sua autora é Wisƚawa Szymborska (pronuncia-se “Vissuava Chembórska), polonesa que ganhou o Nobel de Literatura em 1996 especialmente devido à sua excelente poesia, também já bastante traduzida em português.
Esse volume magro e bem-humorado, porém muito denso em voltagem crítica, resulta da recolha de respostas dadas por Szymborska aos aspirantes a escritores que enviavam originais candidatos à publicação no jornal Vida Literária, do qual a escritora era um dos editores. A maioria das respostas timbra por uma ironia que chega a ser cruel, e por isso o livrinho é leitura leve e divertida. Mas, acima de tudo, os conselhos dados em tom de gozação formam um esboço de poética – pelo menos, uma antipoética – que pode ser bem útil a quem pretende se iniciar na vida literária.
Aqui vai um resumo deles preparado pelo resenhista, que leciona a disciplina Escrita Criativa no curso de Bacharelado em Letras/Português da UNIFAL-MG. Quando se julgou mais apropriado, foi simplesmente transcrito o trecho correspondente do Correio Literário, cuja tradução foi feita com apuro por Eneida Favre – estão a demonstrá-lo as notas de rodapé. Na falta de uma palavra correspondente a decálogo e adequada a uma lista com 30 itens (“triandálogo” soaria muito esquisito), manteve-se no título da resenha a metonímia, as aspas querendo dizer que este “decálogo” tem o triplo de conselhos daquele de Quiroga ou do outro, mais antigo, com que Moisés baixou do monte Sinai.
- “Em primeiro lugar, deveria se preocupar se tem algo a dizer.”
- A confissão das mágoas que o autor carrega pode ser uma ótima terapia, mas nunca será suficiente para que um texto possa ser considerado literário.
- É preciso ter um plano B. Ser escritor depende de tantas variáveis como ser jogador de futebol.
- Não leve a sério a opinião de ninguém com razões afetivas ou interesses fortes o bastante para evitar chatear você.
- Rimbaud escreveu poemas geniais aos 16 anos, mas, até prova em contrário, você não é a reencarnação de Rimbaud.
- “A poesia (fosse lá o que mais pudéssemos dizer sobre ela) é, foi e será um jogo, e um jogo sem regras não existe. Sabem disso as crianças. Por que os adultos se esquecem?”
- “(…) na juventude tudo ainda é possível. Até mesmo um deles se tornar um escritor de verdade.”
- Se você ainda não viveu, é difícil que consiga escrever algo literariamente válido e original. A literatura é sobre a vida e a condição humana.
- Nenhuma crítica deve ser encarada como sentença irrecorrível, mas qualquer uma (mesmo as mais azedas) podem ser diretrizes ou elementos informativos da imprescindível autocrítica.
- A melhor crítica é sugerir a leitura de textos muito superiores, nos mesmos quesitos, àquilo que alguém pensa ter escrito.
- Nos “casos de extrema escrevinhação”, a extrema vaidade costuma ser a capa da extrema ignorância.
- É virtualmente impossível, para quem não tenha aquilo que há poucos anos ainda era chamado de cultura geral, escrever algo decente em termos de literatura.
- A poesia é a síntese verbal de uma experiência interior intensa. A prosa é outra coisa, mas costuma sair melhor quando o prosador é, ao menos, um bom leitor de poesia.
- A prolixidade é um mau presságio. Detestar poesia, idem.
- Anotações enfileiradas no papel sem nenhum senso de estrutura não são poesia. Existe uma retórica do poema que precisa ser pensada, ele não surge por um passe de mágica.
- “Por acaso é uma afronta dizer a um homem louro que seus cabelos não são castanhos, se, além disso, ele mesmo fez a pergunta?”
- “A falta de talento literário não é nenhuma desonra. Acontece a muitas pessoas sábias, esclarecidas, de caráter nobre e também extremamente talentosas em outras áreas. Quando escrevermos que um texto é ruim, não temos a intenção de ofender ninguém, nem de lhe tirar a fé no propósito da existência.”
- Conversar com pessoas de verdade, e pessoalmente, costuma ajudar bastante a imaginar como as personagens de um romance ou de um conto podem falar sem que pareçam robôs ou marionetes.
- Não se pode opinar sobre um texto ilegível: “Por que temos de querer ler isso, se tudo indica que nem o autor se interessou em passar o texto a limpo?”
- O tema não constitui, por si só, um bom texto literário. Literatura é forma, e nos casos mais felizes se dá o casamento perfeito entre forma e conteúdo.
- Desconhecer a tradição literária e as normas gramaticais implica, sim, uma distinção: a distinção do autor como ignorante que repete o que já foi feito muitas vezes e/ou exibe um manejo tosco de seu principal instrumento de trabalho.
- Não rimar é tão difícil como rimar. Ou tão fácil.
- “É preciso descrever o mundo continuamente, porque, afinal, ele não é o mesmo de tempos atrás, nem que seja pelo fato de que não estávamos nele antes.”
- Não é nada promissor escrever sobre coisas que você não conhece, mas isso não quer dizer que aquelas já conhecidas sejam suficientes.
- “Como se tornar um literato? O senhor nos faz uma pergunta problemática. Exatamente como o menino que perguntou como são feitos os bebês, e, quando a mãe lhe disse que depois explicaria, porque naquele momento estava muito ocupada, ele insistiu: ‘Então me explique pelo menos como se faz a cabeça’… Pois bem, nós também vamos tentar explicar pelo menos a cabeça: é preciso ter um pouco de talento.”
- “no fundo, são os genes que decidem”.
- É preciso saber um pouco de teoria. Que, porém, ela nunca se torne mais importante que o próprio texto literário – nem que você deseje ser “apenas” professor de literatura.
- “Mas precisaria ainda reescrever cada continho pelo menos cinco vezes. A propósito, gostaria de lembrar que Tchekhov reescrevia seus textos sete vezes e Thomas Mann fazia cinco correções (nesse meio tempo inventaram a máquina de escrever).”
- “A pressa, salvo em raríssimos casos, cria produtos semiacabados. Pois qual é a primeira coisa que se apodera da caneta? É o que já está pronto de antemão, são, antes de tudo, as banalidades, as convenções ultrapassadas e o páthos de quarta mão. Um impulso sincero de nada serve se é expresso por um lugar-comum.”
- “Que tal tratar o poema como uma escultura e fatigar-se um pouco até que o pensamento atinja sua forma final e única?”

Título original: Correio Literário – Ou como se tornar (ou não) um escritor
Autora: Wisława Szymborska
Tradução: Eneida Favre
Gênero: Ensaios | Correspondências
Ano da edição: 2021
Páginas: 104
Selo: Editora Âyiné

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Entre 2022 e 2024, foi colaborador do Jornal UNIFAL-MG, onde assinou a coluna semanal exclusiva Montra, dedicada à crítica e à divulgação de produções literárias.
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