Na literatura brasileira, pelo menos desde Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, faz parte da própria concepção de um romance digno do nome o questionamento da própria forma narrativa. A autoconsciência do status ficcional está de tal maneira entranhada na obra machadiana que se tornou, em face do caráter paradigmático do maior escritor brasileiro, um problema incontornável para quem pretenda compor um romance. O conhecimento apuradíssimo da tradição literária, brasileira e ocidental, é o primeiro traço que destaca Luiz Ruffato na atual geração de ficcionistas brasileiros: temos aqui um prosador que, antes de mais nada, é profundo conhecedor de tudo o que se escreveu de relevante na ficção, especialmente em língua portuguesa.
Essa qualidade de Ruffato se patenteia na leitura de Eles eram muitos cavalos (2001), o qual, para começar, muitos discordarão de que seja um romance. Faz parte do projeto do livro essa dúvida. O gênero da obra é problemático já porque, entre os 70 fragmentos que a compõem, entram desde “capítulos” que podem perfeitamente ser chamados de contos até apropriações de textos alheios como uma previsão astrológica, uma receita de simpatia e anúncios sentimentais. Um desses fragmentos consiste na lista extremamente eclética dos livros enfileirados numa estante; em outro, anúncios de emprego em ordem alfabética são o ready-made que concretiza, aos olhos do leitor, a busca afoita de um trabalhador sem colocação, busca enunciada pela simples inserção de um “Ah!” em seguida ao item “maçariqueiro”.
Há uma narrativa em Eles eram muitos cavalos, e ela começa por, na tradição do Ulysses joyceano, colocar em questão ordem espaço-temporal. Apresenta-se, no seu decorrer, uma percepção esfacelada do real que é a de qualquer indivíduo sobrevivendo diariamente ao caos da maior cidade brasileira, São Paulo.
Sim, o livro é um romance, e São Paulo é o seu protagonista. Para trazer os modelos ruffatianos ao contexto da tradição literária brasileira, tratamos de um romance social ou de espaço, como O cortiço, de Aluísio Azevedo. A metrópole paulista está presente em cada página, figurada pela sucessão dos fragmentos e, dentro deles, pela fragmentação da linguagem e da perspectiva do narrador. Luiz Ruffato é tributário do realismo, mas um realismo que entrelaça na imagem do real os vários planos de que este se compõe. Numa primeira análise, poderíamos isolar trechos que dizem respeito, ao mesmo tempo, a uma paisagem externa e a outra interna, psicológica. A mestria do escritor consiste sobretudo em justapor cenas, pensamentos, gestos e impressões, muitas vezes marcando as diferenças de plano com notações tipográficas, especialmente o negrito e o itálico. Ruffato obviamente não as inventou, mas sabe usá-las com rara mestria. O mundo interior das personagens, sobretudo as lembranças e os pensamentos simultâneos à ação relatada, intercala-se no discurso do narrador – o mais das vezes, um narrador tipicamente realista –, exigindo a maior prontidão do leitor para perceber a mudança de registro.
A variedade desses registros se reflete nas muitas linguagens empregadas em Eles eram muitos cavalos, obra cujo caráter múltiplo já é, por sinal, indicado no título, um verso transcrito do mais importante livro de Cecília Meireles, o Romanceiro da inconfidência (1953). Como seria de esperar num escritor da extração de Ruffato, a escolha está muito longe de ser ocasional, e a metonímia no poema ceciliano sofre uma rotação para tornar-se metáfora na qual os “cavalos” podem ser entendidos como seres humanos, sobretudo os que trabalham como, os que são tratados como animais de carga. Essa figuração traduz a forte empatia do autor com os trabalhadores, a que não estará alheia sua vivência como torneiro mecânico e jornalista – lembrando que, desde a última década do século XX, o típico jornalista foi reduzido a operário submetido à crescente carga de um trabalho quase braçal.
Os “muitos cavalos” do título são a gente pobre de São Paulo, em grande porcentagem constituída de migrantes que foram parar na metrópole em busca de trabalho e melhores condições de vida, mas muitas vezes encontram a miséria, o desalento e a desgraça. É bastante cinzenta a São Paulo de Ruffato, filtrada que foi pela vivência de década e meia olhando-a com o estranhamento possível somente a um estrangeiro. O camponês de Paris, inventado por Breton na esteira do realismo trágico de Baudelaire, aqui se encarna no mineiro da Zona da Mata, para quem a grande cidade nunca será coisa normal, será sempre vista com os olhos do espanto por tudo aquilo existir daquela forma.
Os ricos comparecem à narrativa, mas comumente vistos pela óptica dos despossuídos. Também frequenta essas poucas páginas (cerca de 150) certa classe média afluente, mas, tanto quanto o miserável, espreitada pela infelicidade, às vezes pela tragédia. As personagens bem-postas se arriscam, na São Paulo recriada por Rufffato, a tornarem-se alvo de uma violência em princípio destinada aos desafortunados. Elas fazem contraponto ao baixo-contínuo da pobreza sem esperança, dele participando por acidente ou pela compreensão, certamente momentânea, de que o mal (a desigualdade perversa de renda, a falta de sentido da vida) diz respeito a todos os seres humanos. Todos são “cavalos” montados por algo ou alguém que não se dá a conhecer e cuja face é tão opaca quanto a estranha unidade subjacente à sequência, despropositada para leitores desatentos, das unidades narrativas. Essa sequência é iniciada pelas rubricas “Cabeçalho”, “O tempo” e “Hagiologia”.
Mais esclarecido que a alegação do homem no papo-cabeça de um casal tipicamente paulistano (“são imigrantes são baianos mineiros nordestinos gente desenraizada sem amor à cidade”) é o ponto de vista de um cão no fragmento intitulado “Chacina n. 41”, perdido de seu dono e testemunha de outra matança daquelas que já nem estranham aos habitantes de São Paulo. Ou do Rio, ou de praticamente qualquer grande cidade brasileira.
As leis estruturais do livro existem e estão por ser desvendadas – poucas obras geram uma fortuna crítica tão instantânea como Eles eram muitos cavalos, já traduzido para sete idiomas. O contraste é certamente uma das chaves, e é entregue ao leitor logo de saída: o terceiro e o quarto fragmento, os primeiros propriamente narrativos da sequência, como que dispõem as peças no tabuleiro. No primeiro deles, fala a consciência estilhaçada do homem que “há seis anos escorria sua pálida magreza pelas poucas sombras das ruas tristes de muriaé cidade triste”, no momento às voltas com o conflito decorrente de ter entrado meio clandestinamente – pela via do talento para os negócios, e não por herança genética – para os quadros da classe alta, “calça e camisa Giorgio Armani, perfume Polo borrifado no pescoço, sapatos italianos, escanhoado, cabelo à-máquina-dois, Rolex de ouro”. No segundo, entra em cena a pobreza representada por um pai (talvez o daquele mesmo rapaz de Muriaé) flertando com o mundo longínquo da cidade grande, da ascensão ao consumo, no devaneio de imaginar na televisão o filho “prodígio” que sabe de cor os nomes de todas as capitais brasileiras.
Nesse contraste já se prefiguram muitas das antinomias que presidem à composição da narrativa, sendo as principais as já mencionadas: o fora e o dentro da consciência, amalgamados na interpenetração dos planos, a memória e a observação do presente, os fragmentos de uma experiência interiorana embaralhados à crítica do caos que é São Paulo, síntese da perversidade social brasileira. Uma perversidade que é retratada em sua manifestação mais crua no fragmento “Ratos”, exposição da miséria que inviabiliza já na primeira infância milhões de vidas brasileiras: as crianças dividem com ratos e insetos um cômodo, e por isso têm sarna e piolhos. Toda a carga dessa miséria recai sobre a mãe, assassina resoluta do companheiro viciado em crack:
[perfectpullquote align=”full” bordertop=”false” cite=”” link=”” color=”” class=”” size=”14″]forças não tem mais (..) boca desbanguelada, os ossos estufados os olhos, a pele ruça, arquipélago de pequenas úlceras (…) e lêndeas explodem nos pixains encipoados das crianças e ratazanas procriam no estômago do barraco e percevejos e pulgas entrelaçam-se aos fiapos dos cobertores e baratas guerreiam nas gretas.[/perfectpullquote]
Os momentos mais fortes do realismo ruffatiano são unidades que justificam ter sido o autor, quando de sua estreia na ficção, em 1998, saudado como “um senhor contista” por Ivan Ângelo, autor de a festa, um dos mais representativos romances brasileiros escritos sob o regime militar instaurado em 1964. Duas dessas unidades são “Brabeza” e “Natureza-morta”: qualquer uma delas mereceria entrar, caso fosse publicada isoladamente, na antologia dos melhores contos brasileiros contemporâneos.
Mas a poética ruffatiana não se detém diante do impasse formal (romance ou contos?), de resto já conjurado por Graciliano Ramos em Vidas secas (1938). O móbile narrativo que é o livro persegue uma multiplicação ao infinito de recursos concentrados no mínimo espaço. Daí a reelaboração do estilo seguindo uma tradição que vem do Modernismo mário-oswaldiano – vejam-se as enumerações atropeladas e os neologismos da família de “atoíce” ) – e chega a Guimarães Rosa, cuja anotação da fala sertaneja Ruffato repropõe recorrendo à memória frequentemente revisitada dos coloquialismos típicos da Zona da Mata mineira: “em-dentro”, “em antes”.
A mente do homem contemporâneo é uma cacofonia de multiplicidade inapreensível. Na tradição do romance moderno, pode-se dizer, profetizou-se tal cacofonia por meio da criação, por antecedência, de recursos que visam abarcar uma percepção do real marcada pela relativização crescente do tempo e do espaço e pela incorporação dos estados irracionais da consciência. De Dostoiévski e Joyce ao nouveau roman, de Proust a Faulkner, de Kafka a Beckett, essa linhagem caminhou rumo ao ritmo dissoluto das narrações antinarrativas ou simplesmente elípticas. O romance contemporâneo, se não compactua com a facilitação (evidentemente muito promissora em termos comerciais), é uma forma em crise constante, a indagar o tempo todo sobre sua própria validade como representação do real. É nessa tradição que Ruffato veio inscrever-se, com sua particular consciência da imbricação entre estética e política, com Eles eram muitos cavalos.
Onde encontrar:
Editora Companhia das Letras