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Os/As migrantes e o período demográfico da história

Gil Carlos Silveira Porto¹

A construção de uma geografia e de uma filosofia das migrações perpassa pelo debate, discussão e pesquisa sobre diferentes aspectos do fenômeno migratório. Nessa miríade de possibilidades, pode-se lançar luz sobre as condições de vida e de trabalho de homens e mulheres migrantes nas sociedades de destino, embora, tanto a imigração, quanto a emigração são duas faces de uma mesma conjuntura. “[…] o que chamamos de imigração, e que tratamos como tal em um lugar e em uma sociedade dados, é chamado, em outro lugar, em outra sociedade ou para outra sociedade de emigração […]” (SAYAD, 1998, p. 14).

Mas que enlace há entre a presença de homens e mulheres migrantes nas formações socioespaciais de destino e o período popular ou demográfico da história? Segundo Santos (2017), embora o processo de globalização condicione todos os aspectos da existência humana, ele não atinge a todos os indivíduos igualmente, produzindo assim, ao menos dois corolários. O primeiro é o surgimento de um novo sentido da cultura popular, e o segundo, é a criação de condições férteis à ressurgência das massas que apontam a chegada de um novo período, nomeado pelo autor como o período demográfico ou popular.

O período popular da história se constitui numa afirmação utópica, momento em que homens e mulheres pobres conduzirão a transformação do mundo para torná-lo mais justo e solidário. Daí a consideração de que há uma transição em marcha, onde a gestão do novo ocorre de maneira quase imperceptível para os coetâneos. As sementes desse novo “começam a se impor quando ainda o velho é quantitativamente dominante” (Idem, 2017, p. 141).

A elaboração de um mundo novo, já em formação, sobretudo nos Países do Sul, está sendo produzida nas periferias das cidades e no campo, onde a modernização técnica, ocorrida nas últimas décadas, criou necessidades em todas as classes sociais, possibilitando a centralidade do dinheiro e da informação na vida social. No entanto, no período demográfico da história, essa centralidade será substituída pela centralidade do homem e da mulher, que serão o centro das preocupações e das ações. Esse contexto, ainda de acordo com Santos (Ibidem), estimulará e produzirá novas solidariedades sociais entre indivíduos, entre estes e a sociedade e entre a sociedade e o Estado.

Dito de outro modo, a condição de exclusão, às quais as massas estão submetidas, sobretudo nos países subdesenvolvidos, as farão reemergir. Esse movimento não se dará sem o papel de homens, mulheres, jovens, adultos e crianças que deslocam de seus locais de origem buscando melhorias em suas condições materiais de existência (migrações econômicas) ou refúgio (migrações políticas) nos locais de imigração. Assim, um aspecto condicionante desse processo de renascimento das massas é “a ampliação da vocação atual para a mistura intercontinental e intranacional de povos, raças, religiões, gostos” (SANTOS, 2017, p. 145).

Neste contexto se inserem imigrantes de diferentes nacionalidades que passaram a residir em centenas de municípios brasileiros no período atual. Para identificar a relação entre a chegada deles e o período popular da história que se anuncia, apresentaremos, brevemente, alguns eventos relacionados às trajetórias socioespaciais de três imigrantes que vivem hoje no Brasil. São eles, Claudine Shindany Kumbi, refugiada da República Democrática do Congo que vive em São Paulo (SP), Louis Delhomme Desinord, imigrante haitiano que vive em Andradas (MG) e Yhonny Prado Castro, venezuelano residente em Varginha (MG).

Claudine Shindany Kumbi, residente no Brasil desde 2014, possui elementos concretos que demonstram as dificuldades por ela enfrentadas para sua inserção cidadã no Brasil. Os entraves são identificados desde o processo de obtenção de documentação, de abertura de conta corrente em banco, de acesso à moradia digna, entre outros. Sem documentação oficial e com dificuldade de inserção no mercado de trabalho, Claudine quando aqui chegou, ainda teve que lidar com a dificuldade de obter moradia digna, situação potencializada pela discriminação racial que se manifestou na busca de imóvel para alugar. Ao chegar ao Brasil, por exemplo, planejou residir em um bairro com moradores de alto poder aquisitivo e onde o filho estudava, mas teve dificuldade por ser uma mulher negra e africana.

Louis Delhomme Desinord, sexto haitiano a se fixar no município de Andradas (MG) e que reside no Brasil desde 2013 vivenciou dificuldades semelhantes às de Claudine. Ao chegar em Minas Gerais, começou a enviar parte do seu salário para esposa e filhos, após ter conseguido trabalho numa empresa de fabricação de cerâmica naquela cidade e, recentemente, após anos de trabalho e economias, conseguiu reunir sua família no Sul de Minas. Louis se tornou pastor no Brasil e abriu sua própria igreja, que hoje possui cerca de setenta membros. Durante longo período de trabalho numa fábrica da cidade, com tradição de mobilidade de posições, Louis conta que nunca lhe foi dada oportunidade de ascensão profissional, diferentemente de um trabalhador branco, que em menos de quatro anos foi promovido a supervisor. Foi demitido da fábrica de cerâmica e passou a trabalhar como diarista na construção civil local.

Para encerrar as experiências migratórias, apresentaremos a trajetória de Yhonny Prado Castro, que vive no Brasil há algum tempo. Entre os desafios encontrados ao chegar em Varginha (MG) estão o uso e a compreensão da língua portuguesa, a dificuldade para aquisição de carteira de trabalho e de identidade e do Cadastro de Pessoas Físicas (CPF). A demora em receber um desses documentos o fez perder, por três vezes, a oportunidade de inserção no mercado formal de trabalho, acrescentando que em função disso, muitos dias em horários de refeições ficou sem se alimentar, para que seu filho pudesse se nutrir. Desde que chegou ao Brasil, além de realizar em sua casa atividade que lhe possibilitava receber alguma “gratificação”, e de sua inserção na atividade comercial no circuito inferior da economia, o depoente informa que foi explorado em outros espaços de trabalho por conta de ser estrangeiro ao receber a metade do salário destinado a trabalhadores com registro de carteiras assinada.

Como vimos, os relatos acima apresentados são uma pequena síntese das condições a que são submetidos homens e mulheres imigrantes africanas e latino-americanas que decidiram se fixar no Brasil buscando segurança e melhores condições de vida no período atual. Diferente de imigrantes brancos e/ou qualificados que aqui se estabelecem, esses homens e mulheres são submetidos a situações de discriminação e segregação social, racial, laboral e espacial desde que aqui aportam. Têm dificuldades de acessar adequadamente o serviço público de saúde em função de sua indisponibilidade para atendimentos urgentes e em decorrência da fragilidade de comunicação entre pacientes e enfermeiros ou médicos, por causa da diferença de idiomas. Além dessas situações, vivenciam episódios que revelam a desconfiança de brasileiros para com eles, e no caso de estrangeiros negros, são submetidos a situações de racismo e preconceito desde que aqui chegaram. De uma forma geral, há no Brasil aqueles que não querem contato com estrangeiros vindos dos Países do Sul e a eles dirigem xingamentos, que denotam muitas vezes práticas xenofóbicas.

No entanto, ações políticas criadas e desenvolvidas pelos imigrantes aqui em pauta, sinalizam uma subversão à ordem reinante e a anunciação de possibilidades de criação de um novo mundo, e, portanto, de um novo tempo. A criação de serviços ou associações com a finalidade de auxiliar imigrantes internacionais que chegam ao Brasil e que estejam passando por alguma dificuldade, a participação política em instituições públicas e de eventos em espaços públicos buscando garantir aos estrangeiros os mesmos direitos que os nacionais são alguns dos sinais de que algo novo está sendo gestado. A mistura de corpos, culturas, religiões e práticas socioespaciais nos parece ser uma condição essencial à formação desse novo mundo, onde a centralidade não será mais o consumo, mas homens e mulheres de diferentes origens. Quem viver verá.


Fonte do texto

PORTO, Gil Carlos Silveira. Trajetórias socioespaciais de imigrantes internacionais no brasil no período atual. Anais do XIV ENANPEGE… Campina Grande: Realize Editora, 2021. Disponível em: <https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/78886>. Acesso em: 23/06/2024 22:47


Referências

DESINORD, L. D. Trajetórias socioespaciais de imigrantes internacionais e/ou refugiados no Brasil. II Colóquio sobre migrações e espaço geográfico. Programa de pós-graduação em Geografia da Unifal-MG. Alfenas, 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=H8cQI-SrsbU>. Acesso em: 15 de jul. 2021.

PORTO. G. C. S. “A constituição de lugares por imigrantes internacionais e refugiados no período atual: uma leitura geográfica crítica em construção”. In: SILVA, M. A. e PORTO, G. C. S. Revisitando um pensamento revolucionário: 20 anos sem Milton Santos. Salvador: Editora da UFBA, 2023.

PRADO, Y. UNIFAL-MG. Estudos Abertos do GENI – Refúgio no Brasil. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=R18PHt7ApiI>. Acesso em: 30 de jul. 2021.

SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2017 [2000].

SAYAD, A. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp, 1998.


Gil Carlos Silveira Porto é professor de Geografia Humana do Instituto de Ciências da Natureza (ICN) da UNIFAL-MG onde ministra aulas nos cursos de Geografia (Bacharelado e Licenciatura) e no Programa de Pós-Graduação em Geografia. Licenciado, bacharel e mestre em Geografia, realizou doutorado em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com período sanduíche na Universidade do Porto, Portugal. Tem experiência na área de Geografia, com ênfase em Geografia Urbana, Geografia da População e Geografia Econômica, trabalhando principalmente os seguintes temas de pesquisa: feiras livres na cidade contemporânea, geografia histórica, mobilidade espacial da população e rede urbana; integra o Grupo de Pesquisa Estudos Regionais e Socioespaciais – GERES.

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