Pensamento social a contrapelo: contribuições de Martineau, Sarasvati e Schreiner

Cinthya Bastos Ferreira¹

Eu falarei da escrita feminina: do que ela fará. É preciso que a mulher se escreva: que a mulher escreva sobre a mulher, e que faça as mulheres virem à escrita, da qual elas foram afastadas tão violentamente quanto o foram de seus corpos (CISOUX, 2022).

Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista-histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo (BENJAMIN, 1996, p. 225).

A constituição e a rotinização de uma área de conhecimento são moldadas pelas relações sociais que a tornaram possível. Como coloca Collins (2009), o pensamento sociológico sistematizado emerge da possibilidade de se evocar que a sociedade é um construto, não algo dado, a partir do giro histórico da modernidade, que propicia uma ruptura com a estabilidade e com a fixidez enquanto pressupostos político-existenciais até então hegemônicos. Nesse sentido, ater-se às condições de surgimento da Sociologia, nos conduz também a indagar as políticas de visibilidade-invisibilidade a ela associadas.

Diante disso: onde se localizam as mulheres na Sociologia oficializada, ensinada, transmitida?

Ao levar em conta a divisão sexual do trabalho, a escrita empreendida por mulheres já vem sendo, por si só, um desafio historicamente posto. Os processos de generificação do vivido produzem um regime de disposição do tempo assimétrico e estratificado, que antecede, mas caminha junto, às problemáticas da recepção dos escritos levados a cabo por mulheres – mulheres estas situadas em termos de classe, raça e demais marcadores sociais da diferença, os quais interpelam um olhar interseccional para a capacidade de enunciação e de escuta do que escapa ao horizonte androcêntrico da produção do conhecimento legitimado.

Dito isso, entre teoria sociológica e história da sociologia há um cenário de entrelaçamentos, no qual a noção de pioneirismo encontra porosidade com o processo de depuração ou de decantação das produções sociológicas, que pode desaguar nos clássicos como efeito de sua inserção no cânone ou ter sua inserção no cânone como consequência de seu estatuto de clássico (HAMLIN, WEISS, BRITO, 2023). Dessa forma, observa-se que há contribuições pioneiras e relevantes no campo no pensamento social que, todavia, não se alçaram ao status de clássico ou garantiram seu lugar no cânone sociológico, no desenrolar histórico da disciplina.

A título de exemplo, conforme apresentam Toste e Sorj (2021), Harriet Martineau (1802-1876), intelectual inglesa do século XIX, escreveu o primeiro manual de pesquisa sociológica de que se tem registro, anterior ao clássico As Regras do Método Sociológico, de Emile Durkheim, publicado em 1895. Em sua obra intitulada Como observar: morais e costumes, de 1838, a autora, pioneira-cânone-dissidente, inicia sua discussão com a distinção entre pesquisa científica e relatos de viagem, gênero bastante popular à época, pautando o problema das generalizações antecipadas, enquanto também afirma a possibilidade de desenvolvimento de métodos de generalização segura.

Além disso, Matineau ressalta a importância do controle de viés, do lugar da diversidade na análise de regularidades, bem como da vida privada, a partir do que esta revela sobre o trabalho doméstico, sobre a constituição de vínculos e sobre a socialização das crianças, tecendo alertas, neste ínterim, em relação ao empiricismo ingênuo, que se ancora na ideia de que se pode conhecer a sociedade de modo espontâneo, sem o estabelecimento de perguntas prévias, sem a formulação de questionamentos precisos ou sem o delineamento de um desenho de investigação que direcione o olhar do/da observador/a.

Quanto a isso, por um lado, a realidade social, dada a sua pluralidade e amplitude, nos desafia a encontrar e a definir meios de acesso que garantam a extração de recorrências e de exceções, bem como de explicações para essa configuração mais ou menos intercambiante. Por outro, tem-se também o desafio de enquadrar a experiência para além da reivindicação de autoridade individual. Nesse último caso, em proximidade com o que veio a ser formulado posteriormente por Durkheim (o que aponta para o caráter coletivo e difuso das elaborações intelectuais em circuitos de pensamento diversos), a autora defende ter como ponto de partida o estudo das coisas, não a narrativa individual das pessoas sobre elas.

Neste direcionamento, Martineau aponta para as potencialidades das instituições e dos diversos registros de povos e de nações como meio privilegiado de se adentrar em suas condições de vida, bem como de acessar seus modos de representação de si. Compreende-se que cada um desses registros (sejam eles túmulos, documentos, disposições legais, cantigas populares ou monumentos públicos) condensa formas de viver e de dar sentido à vida (e à morte), e atuam como porta-vozes de contradições sociais, de sensos morais e de relativa cristalização de costumes, que superaria a percepção individual acerca dos fenômenos, a partir de uma reconstrução teórica da sociedade empírica.

Seguindo com o resgate de contribuições de mulheres à teoria social, o pensamento de Pandita Ramabai Sarasvati (1858-1922) e de Olive Schreiner (1855-1920), formulados desde Índia e África do Sul, se entrelaçam nos complexos cruzamentos entre anticolonialismo e defesa dos direitos das mulheres, na passagem do século XIX ao século XX. De modo geral, visualiza-se que ambas elaboraram uma crítica ao pretenso salvacionismo eurocêntrico, que se articulava com um projeto civilizatório de manutenção das relações de dominação entre os países, e à naturalização do papel atribuído às mulheres em sociedades que friccionaram tradição e intervenção estrangeira calcada na violência e na exploração.

De acordo com Taflon e Sorj (2022), Sarasvati redigiu um dos primeiros manifestos políticos feministas escritos por uma indiana. Nele, se analisa como o patriarcado ressoa da/na cultura bramânica, pensando as interfaces entre religiosidade, nacionalismo e colonialismo na constituição das desigualdades de gênero. Sua discussão aborda, em especial, o estigma recaído sobre as mulheres viúvas e a problemática do infanticídio feminino. Nesse enquadre, são frisadas as apropriações seletivas e instrumentais dos escritos sagrados, destacando uma dimensão social nas justificativas religiosas de opressão às mulheres.

Além de problematizar as restrições imputadas às mulheres na sociedade indiana, Sarasvati buscou maneiras de atuar na reforma social, edificando casas de acolhimento e de profissionalização feminina. Somado a isso, a autora enfrentou as ambiguidades de se localizar, a um só tempo, na oposição à intervenção britânica na Índia, e em oposição à tradição nacionalista hindu. Esse posicionamento imputa à Sarasvati um “não-lugar”, principalmente com sua conversão ao catolicismo. Contudo, torna-se central pensar que a recusa aos preceitos generificados do tradicionalismo não implica na negação da luta em prol da autodeterminação dos povos e, por conseguinte, da luta anticolonialista.

Por seu turno, também a partir da apresentação de Daflon e Sorj (2022), Schreiner se firma como uma autora que atua na denúncia das explicações biológicas para as exclusões que são de cunho social, evidenciando que essas desempenham uma função de manutenção de desigualdades. Nesse sentido, a autora se contrapôs ao pensamento eugênico de Pearson e à política colonial de Rhodes, igualmente ancorada em pressupostos hierárquicos biologizantes, assim como às conclusões supostamente científicas acerca das aptidões das mulheres. Desse modo, Schreiner pensou com e contra as teorias biológicas do século XIX, isto é, conhecendo as regras do jogo e jogando em conformidade com elas, pôde ressaltar, de dentro, suas fragilidades e equívocos.

Tomando esses casos particulares como emblema, inquire-se sobre as relações entre o fazer científico e as múltiplas instâncias de saber/poder que regulam silenciamentos e vociferações, bem como sobre a capacidade de escuta do público geral e/ou especializado. A partir disso, vislumbra-se que, um clássico, para se tornar clássico, demandou e demanda leitores/as, demandou e demanda discussão sobre suas proposições, movimentação nos círculos intelectuais de prestígio. Em suma, capacidade de influir, o que tem que ver com a atribuição de um status privilegiado, como argumenta Alexander (1999), e que ultrapassa a materialização da obra em si, ao se articular com fatores estruturais das formações sociopolíticas e culturais, das quais as relações sociais de gênero são um trunfo incontornável.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXANDER, Jeffrey. “A importância dos clássicos”. In: Giddens, A. & Tuner, J (orgs.). Teoria social hoje. São Paulo: Editora da UNESP, 1999, pp. 23-89.

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996.

CISOUX, Helene. O Riso da Medusa. São Paulo: Bazar do Tempo, 2022.

COLLINS, Randall. Quatro tradições sociológicas. Petrópolis- RJ: Editora Vozes, 2009.

HAMLIN, Cynthia Lins; WEISS, Raquel A.; BRITO, Simone M. “Por uma Sociologia polifônica: introduzindo vozes femininas no cânone sociológico”. Sociologias, vol. 24, p. 26-59, 2023.

TOSTE, Verônica; SORJ, Bila. Clássicas do pensamento social: mulheres e feminismos no século XIX. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2021.


Cinthya

Cinthya Bastos Ferreira é egressa do curso de Ciências Sociais (Licenciatura) da UNIFAL-MG. Atualmente é mestranda em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Suas áreas de interesse são: estudos feministas, prostituição, sociologia do trabalho, psicologia social crítica, educação e ensino de sociologia, teoria marxista da dependência.

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