O resultado de uma pesquisa desenvolvida na UNIFAL-MG, que analisou como dicionários escolares infantis representam o conceito de família, acende um alerta para educadores: apesar de alguns avanços, esses materiais ainda priorizam modelos tradicionais e deixam de contemplar a pluralidade de arranjos familiares presentes na sociedade brasileira. O estudo ganhou repercussão na revista Caderno Seminal Digital – periódico da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

A pesquisa é fruto do trabalho de conclusão de curso da acadêmica Raquel Reis, realizado junto ao curso de Letras-Língua Portuguesa e suas Literaturas, sob a orientação de Geraldo Liska. O artigo Lexicografia pedagógica e discursos: o conceito de família nos dicionários escolares infantis, publicado na revista da UERJ, contou com coautoria também de Jeander Cristian da Silva, doutor em Estudos Linguísticos pela UFMG.
Para desenvolver o estudo, a autora examinou verbetes e ilustrações de oito diferentes obras voltadas à educação infantil e aos anos iniciais do Ensino Fundamental, tanto obtidas via programas governamentais, como o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), como em livrarias. O foco foi a análise dos discursos mobilizados pelos dicionários e o impacto dessas escolhas na formação linguística e social das crianças.
Raquel Reis, que é mãe do Benício, de 7 anos, enfatiza que a presença de modelos tradicionais nos verbetes analisados reforça a necessidade de uma revisão crítica dos processos editoriais. “Como mãe, vejo que a escola é um espaço em que a pluralidade deveria ser celebrada. Quando o dicionário infantil, um dos instrumentos mais consultados pelas crianças, não contempla essa pluralidade, perdemos uma oportunidade fundamental de educar para a diversidade”, destaca.
Segundo ela, a pesquisa mostra que a linguagem tem papel central na formação cidadã, uma vez que ampliar o conceito de família nos materiais pedagógicos significa ampliar também o espaço de existência das próprias crianças. “Uma criança que não vê sua realidade representada tende a interpretar sua vivência como inadequada ou invisível”, argumenta.

O orientador do trabalho, Geraldo Liska, doutor em Estudos Linguísticos e professor voluntário do curso, observa que a análise dos dicionários infantis evidencia o quanto a escola ainda depende de instrumentos linguísticos que não acompanham as transformações sociais.
“Os dicionários deveriam ajudar as crianças a compreender o mundo em que vivem, mas muitos ainda reforçam uma ideia única de família, distante da realidade contemporânea. Isso afeta a construção de sentido e a identidade dos estudantes”, afirma.
Representações restritas podem gerar invisibilidade entre crianças
Os autores esclarecem que os dicionários são fundamentais na construção dos sentidos durante a alfabetização, uma vez que moldam a compreensão de conceitos sociais. A forma como definem família pode reforçar normas ou ampliar a percepção da diversidade.
“A investigação identificou que a maioria das obras analisadas apresenta família como um núcleo formado por pai, mãe e filhos, com pouca menção explícita a outras configurações familiares existentes, como famílias monoparentais, homoafetivas, recompostas ou extensas. Além disso, remetem a laços sanguíneos, excluindo a adoção, por exemplo”, revela Raquel Reis.
As representações imagéticas encontradas na pesquisa geralmente reforçam o mesmo padrão: adultos heterossexuais, brancos e com dois filhos, reforçadas nos dicionários ilustrados. Tal recorte limitado, segundo os pesquisadores, pode gerar estranhamento e invisibilidade entre crianças que não se reconhecem nessas descrições.
“Os dicionários infantis ainda funcionam, em grande medida, como instrumentos de fixação de um modelo social idealizado, e não como espelhos da realidade contemporânea”, comenta a acadêmica.
(Imagens: Reprodução/Capas de dicionários de educação infantil)
Discurso, linguagem e formação cidadã
A pesquisa articula referenciais da lexicografia pedagógica, da análise do discurso e da linguística aplicada para demonstrar que escolhas aparentemente neutras carregam significados ideológicos. “Ao apresentarem apenas um tipo de família como referência, os dicionários colaboram para a manutenção de discursos hegemônicos e para a naturalização de determinados padrões”, contextualiza Geraldo Liska.
Para os pesquisadores, ampliar a representação da diversidade familiar nos materiais didáticos é fundamental para promover uma educação linguística sensível, inclusiva e alinhada às políticas contemporâneas de direitos humanos.

Contribuições para a educação básica
Geraldo Liska ressalta que, ao incorporar perspectivas plurais e atualizadas, a pesquisa reforça a importância de repensar a produção e a revisão de dicionários escolares.
Segundo ele, materiais mais inclusivos podem tanto apoiar práticas pedagógicas comprometidas com a diversidade e fortalecer a identidade de crianças que vivem em arranjos familiares não tradicionais, quanto promover reflexão crítica sobre linguagem, cultura e sociedade. Além disso, os dicionários revisados nessa perspectiva podem também ajudar a romper com estereótipos historicamente reproduzidos.
“O estudo também aponta caminhos para que editoras, professores e especialistas em lexicografia pedagógica construam instrumentos mais condizentes com a realidade multicultural do país”, finaliza.
O artigo sobre o trabalho com os resultados na íntegra pode ser acessado neste link.





















