Já ninguém lê livros de bolso, aqueles que a gente comprava na banca de jornal: de faroeste e de espionagem, principalmente. Um brasileiro chamado José Carlos Inoue certa vez concedeu ao Estadão interessantíssima entrevista revelando ter escrito, ao longo de vários anos, nada menos que três desses livrecos por dia. Mesmo com enredos e personagens estereotipados (no caso dele, a especialidade era o faroeste), devia ser tarefa difícil escrever assim, em escala industrial.
Tal escala remonta ao Romantismo. O alemão Ludwig Tieck, por exemplo, tinha uma verdadeira fábrica de literatura da qual saiu o famoso Gato de Botas. E a produção em série se justificava, porque era a primeira vez na História que livros se tornavam uma mercadoria muito lucrativa; no início do século XIX, coincidiram para esse fenômeno a urbanização acelerada nos países industrializados e a disponibilidade de impressoras movidas a vapor, que permitiam uma multiplicação das tiragens impensável nos tempos gutemberguianos.
No Brasil, Marcos Rey (1925-1999) foi dos poucos escritores que conseguiram vender milhões de exemplares. Nossa escala editorial foi e continua sendo pífia se comparada à população potencialmente leitora ou nominalmente alfabetizada, e assim, para um autor viver da escrita, precisa fazer como diz Milton Nascimento na canção: ir aonde o povo está, o que geralmente significa baratear o produto literário – nem sempre no sentido de reduzir o preço de capa, mas invariavelmente no de criar tramas de fácil entendimento, de preferência divertidas e/ou lacrimosas. Nada de mau nisso, desde que não se perca a perspectiva das proporções e do valor de cada obra. Às vezes se falará, adotando-se critérios mais exigentes de valoração, em paraliteratura.
No caso de Memórias de um gigolô (1968), seu romance mais conhecido, Marcos Rey optou por criar uma versão moderna da tradição picaresca, que remonta à literatura espanhola do século XVI e cujos representantes nacionais mais conhecidos são o Leonardo de Memórias de um sargento de milícias (1851) e Macunaíma. Mas o gigolô de Rey é uma espécie de pícaro rebaixado (expressão que soa estranha, claro), pois lhe falta um bocado da credibilidade realista do personagem de Manuel Antônio de Almeida e, na comparação com o de Mário de Andrade, o efeito desconstrutivo em relação ao idealismo nacionalista romântico.
Isso não importa para leitor, nem devia importar para o escritor. Este escrevia divertindo a si mesmo para divertir os consumidores, e o resultado é que o livro tem uma leveza ausente de boa parte das obras-primas, mesmo porque não é obra-prima; é um bom passatempo que, a seu modo, não deixa de instruir sobre aspectos importantes da natureza humana e da sociedade brasileira. Talvez seja até demais para um romance composto na chave da indústria cultural, menos que na da cultura, que é outra coisa – sendo que “cultura de massa” simplesmente não existe, a não ser como exemplo de oximoro.
O narrador é um sujeito chamado Mariano. Ele inicia seu relato nos tempos de criança, quando vivia com uma certa Antonieta que ganhava a vida como cartomante e, em horas de aperto, também vendia galinhas pretas para apetrechar despachos de umbanda (ou será candomblé?). Quando essa boa senhora morreu, o menino foi adotado por uma cafetina e passou a habitar o respectivo bordel, onde cumpria pequenas tarefas e logo descobriu um jeito de ganhar dinheiro: escrever cartas para as prostitutas, normalmente analfabetas.
Mariano, como único legado da “tia” (status duvidoso, por sinal) morta, herdara um baralho no qual antevira as duas figuras que intervirão muitas vezes em seu destino: a prostituta Guadalupe e seu cafetão Esmeraldo, um típico malandro carioca, ambos transferidos a São Paulo, onde se ambienta o enredo. Nas idas e voltas da vida, diversas vezes Lupe, ou Lu, voltará para Esmeraldo depois de viver longas temporadas com Mariano. Esse vaivém, mais a linguagem desabusada do narrador, são as duas principais constantes de um enredo em que tudo muda a cada capítulo. O problema é que a mudança é, no fundo, sempre a mesma: Mariano, com Lu ou sem Lu, alterna períodos de bom faturamento a outros de miséria. Em alguns destes últimos, acaba sendo obrigado a exercer profissões as mais desencontradas, como guia de cego e vendedor de enceradeiras.
Mas sua verdadeira ocupação é a do título: portador de um charme irresistível – sobretudo para mulheres decadentes –, ele explora diversas companheiras ao longo de duzentas páginas. O que era para ser engraçado, devido à repetição da mesma situação, e apesar das variações, talvez se torne meio maçante para os leitores mais exigentes. Não para a maioria: a leveza da narração, bem mais leve que a defendida por Italo Calvino, justificou a adaptação do romance para o cinema e a TV e cativa o típico leitor por diversão.
A ação frenética e estrambótica se conclui por episódios de humor do tipo pastelão ou por situações de desamparo chapliniano das quais logo o protagonista se redime em mais um lance de sorte ou malandragem. Só que mesmo o humor tem que ser levado a sério, e em algumas passagens isso não é possível. Tem a divertida e cruel descrição de Lola, a “Miss Feiura”, mas de outro lado o desrespeito gratuito e sem lastro de qualificar Machado de Assis como “autor de vários e excelentes livros sobre a arte e prática da masturbação”. No intuito de ser engraçado, às vezes o narrador incorre na simples grosseria.
Na coluna do “haver”, o livro conta passagens de crítica social tão mordaz quanto atual, uma delas a menção ao industrial “considerado por todos um gênio para lesar o fisco e um mago para arrancar empréstimo de bancos do governo”. E várias outras qualidades, claro, pois ninguém vende tantos exemplares só por força da propaganda, e naquele tempo não contava tanto a inércia da exposição obsessiva em todos os espaços de divulgação.
No capítulo “Uma aventura aquática”, o escritor parece ter resolvido mostrar que sabia construir uma narrativa de maneira elaborada, sem a azáfama que caracteriza o restante do romance; o resultado é que ali, sim, se acha literatura ultrapassando a simples diversão e se convertendo em arte.
Agora, se existe algo de que o típico leitor por diversão não vai gostar é o desfecho quase trágico, em que se reúnem na melancolia da velhice três personagens que passaram metade de suas vidas contracenando com a energia de bonecos de mola, aos quais se pareceram muitas vezes pela ausência de lastro psicológico quase a tornar inimaginável protagonizarem cenas de sofrimento.
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