De uma bonita relação afetiva, o pouso-alegrense Fernando Henrique do Vale tirou o impulso para o importante resgate que faz no livro Amadeu de Queiroz: um imortal sul-mineiro, publicado em bem cuidada edição custeada por recursos obtidos por meio de uma lei municipal de incentivo à cultura. Se esse dinheiro existe por aí, como possibilidade ao menos, a obra do pesquisador já tem a grande importância de sinalizar a trilha para se criarem outras leis semelhantes na região.
Escritores a serem redimidos de injustos esquecimentos, também não faltam. Só para não ir muito longe, o Sul de Minas precisa conhecer melhor Jefferson Ribeiro de Andrade (Paraguaçu), Eustáquio Gorgone de Oliveira (Caxambu), Godofredo Rangel (Três Corações), José Vicente (Alpinópolis) e Waldir de Luna Carneiro (Alfenas). É necessário que as novas gerações tenham notícia de um tempo em que a ligação das pequenas cidades com o mundo “real” se fazia por meio da palavra impressa, que seja sempre renovada a lembrança de que a História não começou anteontem.
Amadeu de Queiroz não foi propriamente um gênio da literatura. Frequentou por décadas as rodas paulistanas de intelectuais, tendo mantido amizades com gente do calibre de Mário de Andrade – com quem se correspondeu (naquele tempo, também se mandavam cartas pelo correio) e Monteiro Lobato. Sua obra é composta, principalmente, de um livro de contos, outro de memórias e alguns romances. Destes, Voz da terra (1938) recebeu elogios (ainda que não muito calorosos) de Antonio Candido, o mais importante crítico literário brasileiro.
Dividida entre a produção literária e várias outras atividades – farmacêutico, fazendeiro, político –, a vida do escritor não lhe permitiu extrair tudo o que podia de seu talento. Mesmo assim, reeditar sua ficção pode ser importante na medida em que, no período em que ela foi produzida, a literatura brasileira vivia o que o próprio Candido chamou “consolidação da média”, ou seja, a qualidade do que se escrevia no país atingiu um nível até então nunca registrado, ao mesmo tempo em que o acesso às obras literárias havia crescido bastante. Nesse contexto, talvez ultrapasse o interesse dos estudiosos conhecer os efeitos locais daquele momento de grande prestígio da escrita literária, um prestígio que foi progressivamente apagado nas últimas três décadas.
Amadeu foi um escritor essencialmente regionalista. Seu registro da paisagem sul-mineira está contido principalmente nas obras escritas antes de mudar-se para a capital paulista, sobretudo no referido romance Voz da terra e no livro de contos Os casos do carimbamba (1939). Esta palavra do título, de origem controversa e provavelmente indígena, designa uma espécie de médico prático, atividade exercida tanto pelo pai do escritor como por ele próprio, na condição de farmacêuticos. A família, que tem parentesco com Eça de Queirós, fundou uma das boticas mais tradicionais de Pouso Alegre, estabelecimento que sobreviveu até recentemente como Drogaria Queiroz, embora tivesse sido vendido pelo escritor na década de 1930, época de sua mudança para São Paulo.
Entre os romances de Amadeu, merece menção especial Catas (1956), publicado pela Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais. A obra trata da mineração em Santana do Sapucaí, hoje Silvianópolis, concentrando-se nesse aspecto da história local porque, segundo o próprio autor, a atividade extrativista foi “a mais intensa e produtiva da região, e também porque naquele lugar ocorreram, ao mesmo tempo, as primeiras contendas políticas e pessoais entre paulistas e mineiros”.
A primeira metade de Um imortal sul-mineiro consiste na biografia resumida do escritor. Vale principalmente pela reunião de documentos, incluindo farta iconografia, relativos a sua vida e obra, e oferece uma base quem esteja interessado em conhecer mais amplamente sua produção. Quanto à segunda metade, é composta de uma miscelânea talvez menos necessária ao livro, mas igualmente relevante para testemunhar da proporção do ficcionista pouso-alegrense como escritor. Entre os acréscimos desse anexo, Fernando Henrique do Vale incluiu a comovente história de sua amizade, aos 13 anos de idade, com a velhinha solitária de 95, que morava num quarto de hotel em Pouso Alegre porque tinha medo do tratamento que receberia no asilo: Margarida, a filha de Amadeu de Queiroz, morta em 1998.
Com todos os méritos que tem, o volume patina um pouco no tom excessivamente laudatório, a começar pelo título: já faz muito tempo que soa, até pela suprarreferida perda de importância social da literatura, um pouco fora de propósito chamar “imortal” qualquer escritor, ainda mais se tal imortalidade consistir no pertencimento a uma academia regional. Nem no tempo de Machado de Assis esse modismo importado da França se justificava, mesmo que um ou outro acadêmico tenha mesmo produzido obras dignas de serem lembradas para sempre. É importante resgatar escritores relegados ao esquecimento, mas na proporção do relevo que suas obras possam ter como testemunho de um tempo ou, na melhor das hipóteses, como vislumbre do que há de permanente na condição humana.
O livro está sendo distribuído gratuitamente e pode ser pedido ao próprio autor por meio de seu perfil no Facebook, Fernando Do Vale.
Título: Amadeu de Queiroz: um imortal sul-mineiro
Autor: Fernando Henrique do Vale
Ano da edição: 2023
Financiado pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura