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Umas prosas de Zeca Baleiro

Mesmo cometendo pecadilhos como chamar suas crônicas de “textículos” – um dia isso terá sido engraçado – e ocasionalmente tropeçando na gramática (mas nada muito grave…), Zeca Baleiro fez um bonito livro quando reuniu em Bala na agulha (2010) o material produzido para o blog publicado em sua página na internet (zecabaleiro.com.br). O volume, atravessado pelo humor que é uma das marcas do cantor e compositor, é leitura fluente e agradável.

Zeca Baleiro, apesar de ter emplacado alguns sucessos como cancionista, nunca será um cantor conhecido como, digamos, Waldick Soriano foi. Waldick é um de seus ídolos. Zeca, nascido José Ribamar como tantos maranhenses, inclusive aquele, o dos marimbondos de fogo, atinge com suas canções um nível muito acima do suportável pelas pessoas que cuidam da programação musical das emissoras de rádio e TV – as exceções são pouquíssimas, e cada dia mais raras. Seu repertório inclui preciosidades como “Lenha”, que consegue a quase impensável proeza de ser lírica explorando a afasia poética dos clichês amorosos. E, para não irmos muito longe, Zeca também compôs e gravou com o Pagodinho, seu xará, o engraçadíssimo “Samba do Approach”.

O prelúdio musical fica para introduzir a tese: embora seja um cronista eventual, o músico tem qualidades – de resto, perfeitamente audíveis em suas letras de canções – típicas da boa literatura. Arrisca-se a crítico de política e de costumes, mas sem ser pretensioso: intitula-se “teórico de quiosque”. Seus textos lançam luz sobre aspectos importantes da cultura (e da anticultura) brasileira que não têm interessado tanto quanto deveriam a muitos dos chamados formadores de opinião. Oxalá nossa opinião pública fosse formada e informada mais amplamente por pessoas inteligentes como Zeca Baleiro.

Na raiz de seu estilo, em prosa como em verso, está o conhecimento da tradição. Ele foi, por influência familiar e desde cedo, um leitor frequente, daí amiúde referir-se a poetas e escritores. Sua admiração por Manuel Bandeira, por exemplo, é reiterada em várias das crônicas que compõem o livro. Tal substância encorpa um pouco mais quando o tema é sua especialidade, o cancioneiro popular brasileiro. Uma das melhores crônicas é aquela que dá um balanço da obra de Hervê Cordovil, talvez o mais eclético entre os cancionistas brasileiros. Em outros textos, Zeca resgata figuras que considera injustamente esquecidas, como Cláudia Barroso e o próprio Waldick, de quem assistiu a um dos últimos shows. Tudo bem, vamos fazer de conta que em outro lugar ele não faz, de passagem, um elogio meio esquisito a Zezé “di” Camargo. Zezé de Camargo? Ora, Zeca Baleiro, faça-me o favor! Bem, como disse Glauber Rocha, não vamos pedir coerência a um artista; ele tem é que produzir boa arte.

As lembranças da infância na terra natal, a pequena Arari, e depois em São Luís são uma das melhores partes do livro. O escritor é nostálgico no melhor sentido: tem memória suficiente para tecer a imagem de uma época na qual, descontada a “saudade hypocrita” do narrador de Raul Pompeia, as pessoas eram realmente mais felizes e tranquilas; sobretudo, parece que tinham menos pressa de morrer. Há duas crônicas especialmente belas nessa vertente: a que fala de um tio libanês de Zeca Baleiro e a que define a galeria de personagens de sua infância como uma “Macondo” familiar. Para quem não conhece, Macondo é a aldeia mítica do romance Cem anos de solidão (1967), do colombiano Gabriel García Márquez, prêmio Nobel de 1982.

Músico itinerante, Zeca Baleiro menciona constantemente cenas vividas ou presenciadas em aeroportos. Às vezes, elas são pontos de partida para diatribes irritadas contra a alienação política, cultural e religiosa, tudo junto e misturado, que grassa no Brasil contemporâneo. É importante notar que os textos são anteriores a 2010, e mesmo assim um deles já diagnosticava a “cultura de ódio” que hoje permeia as relações sociais brasileiras. Quase sempre, a crítica é certeira e contundente; às vezes, até, fica parecendo um cacoete ideológico – mas, não: o escritor apenas insiste em apontar o dedo para determinadas burrices nacionais porque elas se tornaram o próprio oxigênio que respiramos, poluído mas nem por isso visível a olho nu. Daí a importância de nos socorrermos de lunetas como a que Zeca oferece.

Ninguém é de ferro – ocorrem lapsos aqui e acolá. Ao mencionar Roberto Carlos, Zeca registra que “dizem” ter começado o “rei” da canção sentimental imitando João Gilberto. Não “dizem”, é só ouvir a primeira canção gravada por Roberto Carlos, “João e Maria”, de 1959, para constatar indisfarçável esforço de reproduzir a voz e o estilo interpretativo do cantor-símbolo da Bossa Nova. Confiando demais na própria memória, Zeca cita distorcida a letra da versão gaga do “Carinhoso”, de Pixinguinha, apresentada pelo humorista Ary Leite no programa Balança Mas Não Cai, na Rede Globo, em 1982. Tudo bem: mesmo assim, ajuda os mais jovens a saber que houve um tempo em que o humor não só era permitido no Brasil – enquanto agonizava a ditadura militar, não sendo possível a gente ter certeza do fato enquanto ele ocorria –, mas também era (puxa vida!) engraçado.

Completam o volume dessas “reflexões de boteco”, como as define o autor no subtítulo, dois anexos. O primeiro é uma espécie de dicionário minimalista que tem, para cada letra do alfabeto, apenas um verbete: “JOGADOR DE FUTEBOL – esportista cujo esporte predileto é comprar carros caros.” O segundo anexo é feito de provérbios e aforismos criados pelo autor ou parodiados, sendo alguns deles classificáveis como bons poemas concretos.

Ainda que não apresentasse tantas e inegáveis qualidades, Bala na agulha teria o mérito de chamar nossa atenção para a existência de um compositor que, na contramão da obviedade repetida ad nauseam, 24 horas por dia e 365 dias por ano, em quase todos os lugares aonde a gente vai, prima por compor canções que não ignoram o fato de um dia o Brasil ter ouvido (no rádio!) artistas do calibre de uma Chiquinha Gonzaga, um Assis Valente, um Noel Rosa e um Cartola. Por sinal, os três primeiros são citados em alguma passagem das crônicas de Zeca Baleiro.

Título: Bala na agulha
Autor: Zeca Baleiro
Gênero: Contos | Crônicas
Ano da edição: 2010
ISBN-10: 8563924001
ISBN-13: 978-8563924001
Selo: Ponto de Bala

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas).

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