Viver numa prisão da Sibéria

Quem pensa na Sibéria apenas como um imenso território gelado está, segundo Dostoiévski, muito enganado. O narrador de Recordações da casa dos mortos (1862) pinta certa região daquela província russa como sendo formada por terras muito férteis e, durante o verão, bastante calorentas. De fato, aliás, o suposto compilador, pois o narrador já estava morto quando seu manuscrito foi achado e preparado para a publicação – artifício mais do que comum na ficção do século XIX.

Na tal região siberiana havia uma cidadezinha para onde se mudara Alexandr Petrovitch Gorjantchikov, modesto professor que havia sido proprietário de terras e cumprira dez anos de prisão por haver assassinado sua mulher. A vida reclusa de Petrovich terminara numa morte solitária, depois da qual acabou caindo na mão do compilador um manuscrito incompleto em que “se alternavam casos estranhos, recordações nefandas, em estilo nervoso, como de índole pessoal se esvaziando em paroxismos”. Aquilo parecia uma obra “redigida à mercê de crises e acessos de alienação mental”, dando conta de um “mundo inteiramente novo, até então completamente desconhecido”. Em seguida, transcreve-se na íntegra o manuscrito, que compõe as Recordações propriamente ditas.

Pelo anúncio e pelo título, esse livro escrito por Dostoiévski oito anos depois de ser libertado, ele próprio, de uma prisão siberiana soa fascinante. A história é mais ou menos conhecida: o escritor participava de um grupo de militantes que, por opor-se ao czarismo, foi condenado ao fuzilamento e, na última hora, teve suas penas comutadas para alguns anos de reclusão. Os anos de Dostoiévski no presídio foram só quatro; os de seu protagonista, dez.

O manuscrito de Petrovich descreve, na primeira parte, a prisão e seus habitantes, depois contando alguns casos que o condenado lá presenciou ou dos quais ficou sabendo. Infelizmente para o leitor atual, aquele “mundo inteiramente novo” ficou bastante velho, tantos são os filmes americanos tratando da vida em instituições prisionais. Também houve e há obras literárias sobre o mesmo ambiente, de maneira que a narrativa dostoievskiana dificilmente soará tão surpreendente quanto pretendeu o autor. Na literatura brasileira, Lima Barreto escreveu um romance – que ficou inacabado – intitulado Cemitério de vivos, evidentemente inspirado nesse modelo russo, comparado ao qual apresenta versão bem mais interessante da vida numa “instituição total”, só que de outra natureza: o manicômio. Antes dele, Machado de Assis já havia inventariado rapidamente a fauna mais comum num hospício, no genial esboço de romance O alienista (1882). Depois deles, merecem destaque as narrativas de Maura Lopes Cançado (Hospício é Deus, de 1964) e de Renato Pompeu (Quatro-Olhos, de 1977), escritores que estiveram, como Lima Barreto internados em instituições psiquiátricas. Machado de Assis nunca deve ter passado nem na porta do hospício da Praia Vermelha, modelo de sua Casa Verde: era lúcido o bastante para ter medo aos psiquiatras da época, satirizados por meio de Simão Bacamarte em O alienista.

Todas essas obras, menos a machadiana, têm em comum com o relato dostoievskiano o fundamento autobiográfico. Em tempo: a expressão instituições totais, salvo engano, foi criada por Erving Goffman, sociólogo canadense que estudou o funcionamento desses estabelecimentos no livro Manicômios, prisões e conventos (1961).

É bastante óbvio ser Alexandr Petrovich um alter ego de Dostoiévski. O romance é o resumo ficcionalizado da estada do escritor no presídio siberiano. Por isso mesmo, seria de esperar maior vivacidade da narrativa sobre aquela “sociedade de decaídos”. Dividida em capítulos relativamente longos, o texto esboça uma espécie de sociologia literária que seria bem mais desenvolvida por ficcionistas posteriores, disso sendo bons exemplos os brasileiros citados – menos Machado, que se dedicou mais à análise psicológica do protagonista e à discussão do significado existencial da loucura, além de alguns modos de funcionamento inseparáveis dos poderes político e simbólico.

Da entrada de Petrovich na prisão até sua saída, tem-se um encadeamento de descrições, curtas dissertações e rápidos episódios isolados. O conjunto não chega a dar ideia muito completa da instituição, mas apresenta variados aspectos do comportamento humano e das relações sociais. Há criminosos que, surpreendentemente, revelam-se melhores que muitas pessoas em liberdade; e há o major que se comporta como típico vilão romântico, mesquinho e perverso. No meio disso tudo, uma e outra história que tem sentido mais lateral ao tema do que propriamente contribui para adensá-lo. Já perto do desfecho, insere-se um conto intitulado “O marido de Anulka”, que lembra certas histórias folhetinescas e algo das Mil e uma noites, e cujo efeito mais provável é a vontade de abandonar a leitura: não faz muito sentido aquela historinha ali.

Mas o livro já caminha para seu fim, e Petrovich acrescenta um capítulo sobre o verão que antecede a sua libertação. Aí aparece uma águia com a asa ferida, que ocupa a atenção dos presos, e, afinal, acaba voando e provocando a reflexão, da parte de um deles, sobre a importância de não se deixar vencer pela adversidade. Desnecessário dizer com o que isso se parece, não?

A seguir vem o episódio em que os detentos esboçam uma rebelião contra a qualidade ruim da comida no presídio. Revolta não dá em nada, logo depois ocorrendo a passagem na qual o terrível major é castigado, perdendo sua condição de militar. Para os curiosos a respeito da intertextualidade, pode ser bastante interessante a semelhança entre a tese do conto machadiano “O espelho”, de Várias histórias (1882), a mesma coletânea que traz O alienista, e esta frase de Petrovich: “É incrível como uma simples farda pode transfigurar um estupor”.

É, enfim, leitura um pouco penosa. Talvez alguns leitores até sintam certo alívio quando o desfecho é anunciado para breve. Nele, de modo nada surpreendente, Petrovich definirá a liberdade como uma “ressurreição dentre os mortos”.

A quem queira entender por que Dostoiévski é considerado um grande escritor, melhor será ler Crime e castigo (1866) ou Notas do subsolo (1864), de preferência numa tradução direta do russo. Ou talvez Os irmãos Karamázov (1879). O idiota (1869), nem pensar.


Título: Recordações da Casa dos Mortos
Autor: Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski
Tradução: Nicolau S. Peticov
Gênero: Literatura | Ficção
Ano da edição: 2015
ISBN-10: 8574924040
ISBN-13: 978-8574924045
Selo: Nova Alexandria


Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

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