A cidade sul-mineira de Carmo de Minas, que até 1953 se chamava Silvestre Ferraz, produziu uma improbabilidade estatística: dois escritores relevantes no mesmo século, número desusado em relação ao contingente populacional do município, que hoje não chega a 15 mil habitantes. Não será o caso de especular as causas do fenômeno, tarefa atribuível a alguém cuja curiosidade vá além do conhecimento das obras desses autores.
Um deles, Murilo Rubião, escreveu meia dúzia de contos ótimos e outros vinte e tantos nem tanto. Recentemente, ganhou maior relevo devido à publicação de sua obra completa pela mais prestigiosa editora do país. O outro foi Godofredo Rangel, que durante a maior parte do século XX foi conhecido quase só como o mais famoso correspondente de Monteiro Lobato, pois sua obra passou décadas esgotada e só muito recentemente vem sendo recolocada ao alcance dos leitores.
Rangel viveu, no início do século XX, como juiz de direito em várias comarcas do Sul de Minas: Machado, Três Pontas, Lavras — de onde saiu, aposentado, para viver seus últimos anos em Belo Horizonte, sempre acrescentando à magra pensão que recebia do Estado os parcos rendimentos de tradutor. Além disso, trabalhou como professor de primeiras letras, numa época em que esse profissional era raro no interior mineiro.
Vida ociosa (1920) foi seu primeiro livro, se não considerarmos a edição em folhetim de Falange gloriosa (1917), que primeiro saiu no jornal Estado de S. Paulo e só em 1954 foi reunido em volume impresso. A edição mais recente de Vida ociosa foi organizada em 1990 com o apoio da Fundação Casa de Rui Barbosa e conta com uma interessante apresentação de Autran Dourado, que via em Rangel um mestre da escrita literária, e com um posfácio do estudioso catarinense Enéas Athanázio, autor da biografia de Godofredo Rangel.
Apesar do subtítulo original, “Romance da vida mineira”, a obra apresenta certas dificuldades de enquadramento nesse gênero narrativo. Não contém propriamente um enredo, mas uma sequência de quadros narrativos e descritivos mais fáceis de definir como conjunto de contos e crônicas. O que os unifica é a perspectiva do narrador, claramente um alter ego do juiz municipal ainda solteiro e bastante incompatibilizado com a profissão. Mesmo assim, as qualidades de Rangel como estilista justificam a leitura; sem contar propriamente uma história, ele mantém, na maior parte do livro, uma linguagem tão saborosa que nem certas tintas meio românticas conseguem estragá-la. A ironia sutil e uma incrível variedade vocabular o salvam.
No primeiro capítulo, de linguagem por demais alambicada, o “senhor doutor” chega a uma fazenda decadente habitada, de favor, pelos antigos proprietários agora economicamente arruinados. O casal de velhos, Próspero e Siá Marciana, tem apenas um filho, o solteirão Américo, um aficionado dos conhecimentos gerais – principalmente astronomia – que se compensa de não haver estudado ensinando um rapazola das redondezas. O menino é negro, e, explicavelmente, os termos da época para se referir aos descendentes de escravos são os que o narrador emprega. (Não convém fazer julgamentos anacrônicos disso, embora facilmente se possa qualificar a perspectiva do autor como racista; nesse capítulo já temos a desfocada discussão a respeito de Monteiro Lobato, que seria mais bem desqualificado pela ruindade de seu romance O choque das raças ou O presidente negro (1926), um dos piores livros que a literatura brasileira produziu. Qualidade literária é um metro à parte, e muitos bons autores seriam tirados das prateleiras se o critério fossem as questões ideológicas – que, no entanto, costumam produzir “inclusões” de obras bastante medíocres.)
O que o protagonista faz, na casa em ruínas da fazenda Córrego Fundo, é conversar fiado e ser paparicado pelo casal de velhos e por Américo, que o têm em grande consideração. Essa folgança o faz ir adiando o retorno à cidade e às lides jurídicas, mesmo porque não há querelas tão importantes a resolver em sua comarcazinha dos cafundós. Essa situação ocupa mais da metade do livro, e o candidato a leitor já pode perguntar: mas para que ler um “romance” assim? De novo, a resposta está no estilo – o fraseado de Rangel, exceto nas poucas ocasiões em que ele perde a mão, é dos mais bem elaborados da literatura brasileira, chegando a lembrar um Machado de Assis, um Graciliano, até mesmo o magnífico contista português Miguel Torga; quase nunca, o José de Alencar mais típico. Esses trechos do livro poderiam ser excelentes crônicas, comparáveis àquelas que fizeram de Rubem Braga o maior expoente desse gênero literário.
Na segunda metade da narrativa, três episódios intercalados meio forçadamente podem ser considerados bons contos; as considerações a respeito de um condenado por assassinato que reencontra, depois de 30 anos preso, a mulher motivadora do crime; uma cavalgada para avistar os peixes em piracema numa cachoeira (do Rio Machado? do Sapucaí?), interrompida pela estada de vários dias na fazenda de um velho paralítico, cuja numerosa descendência forma estranhíssima comunidade. O último capítulo, que relata um afetuoso “acerto de contas” entre o narrador e seus amigos, até que pode ser considerado bom desfecho a unificar os elementos espalhados ao longo de cem páginas.
Outra obra de Rangel, publicada depois da morte do autor, satisfaz melhor os quesitos para ser classificada como romance: Os bem casados (1955). Sua linguagem, contudo, não tem a metade da graça.
Vida ociosa é para leitores que apreciam a língua portuguesa manejada com arte, como neste trecho que descreve o início de um temporal:
[perfectpullquote align=”full” bordertop=”false” cite=”” link=”” color=”” class=”” size=”16″]Foi o sinal. Grossos pingões precipitaram-se em atropelo, empelotando a poeira, cerrando-se, premendo-se, a espipocar balofamente no chão; em pouco a bátega despejava-se em ondadas cheias. Colunas brancas corriam no horizonte, como batalhões de reforços, sucedendo-se, num assalto. Despenhavam-se dos beirais as goteiras tensas, paralelas, estralando nas pedras da calçada; e formando um reticulado de inumeráveis veios, a água confluía para o meio da estrada em enxurro barrento, que abria carreira morro abaixo.[/perfectpullquote]
Quanto aos que não apreciam os vagares de um estilo a ser saboreado, fujam desse livro, cujo fraseado o mais das vezes situado nas vizinhanças da poesia tem bastante chance de o chatear.
Onde encontrar:
Livrarias e sebos