A trilha sonora era Radiohead, mas bem que podia ser Twisted Sister. Em 2006 a Rede Globo, dando uma de Record, produziu aquele caso policial baseado no episódio conhecido como “crimes do Arvoredo”, em referência à rua de Porto Alegre onde, no ano de 1864, um improvável casal foi autuado pela polícia por matar seis pessoas.
Essa é uma das três narrativas entrelaçadas com mão de mestre por Luiz Antônio Assis Brasil em seu romance Cães da província (1987). Os crimes tinham um componente macabríssimo: para sumir com os cadáveres, o ex-oficial de cavalaria José Ramos e sua companheira Catarina Palse, imigrante húngara que não falava português, utilizavam os préstimos de um açougueiro alemão cujo estabelecimento vendia, obviamente sem disso fazer propaganda, linguiça de carne humana. Tudo está historicamente documentado, ocorreu mesmo.
Outra história é a do português Eusébio Cavalcante, bem-sucedido comerciante de secos e molhados na principal rua de Porto Alegre. Ele casou-se com uma jovenzinha de origens suspeitas, num tempo em que o racismo não se disfarça, e paga o preço pelos primeiros tempos de felicidade: a encantadora Lucrécia, antes cantora no coral da igreja, abandona-o por um vendedor de queijos, e a vergonha, misturada ao receio de perder seu prestígio comercial por causa do moralismo provinciano, leva Eusébio a “reciclar” um dos cadáveres do Arvoredo, transformando oficialmente a adúltera em defunta.
Esse estelionato mortuário havia sido arquitetado pelo dramaturgo José Joaquim Campos Leão, amigo do comerciante. O escritor é conhecido pelo pseudônimo Qorpo Santo, adotado em razão de suas convicções religiosas e gramaticais – como logo se percebe, bastante associadas ao desequilíbrio mental. Qorpo Santo escreveu uma interessante obra teatral, publicada em razoável número de edições e estudada por diversos especialistas. Uns o consideram precursor do surrealismo, outros do teatro do absurdo; há quem pense que foi um louco de pedra, porém dotado de razoável cultura e invulgar talento para produzir textos estranhos.
Em torno das três células do enredo gravitam personagens secundárias, às vezes também recortadas da crônica histórica. É o caso do chefe de polícia Dario Calado, responsável tanto pela investigação dos mortos processados em forma de linguiça quanto pela instrução do processo em que a mulher de Qorpo Santo, Inácia, pede a interdição do marido para poder administrar seus bens, nem tão negligenciáveis como se pode esperar de um desparafusado que se dedica às letras. Outros são a dupla de alienistas, que assim se chamavam os psiquiatras da época, encarregada de atestar a sanidade ou a incapacidade mental do dramaturgo. Entre os dois se trava um interessante debate, reflexo da querela que na época opunha o organicismo da psiquiatria nascente às considerações psicodinâmicas que resultariam na psicanálise.
Assis Brasil orquestra tais e outros elementos alternando procedimentos não muito sofisticados, mas que evidenciam um seguro domínio da técnica romanesca. A progressão do enredo figura na mente do leitor, de modo verossímil e surpreendente, a interdependência entre os vários destinos em jogo; ao fundo, um painel da cidadezinha que era na época a capital gaúcha, onde todos se conheciam e por isso a fofoca corria à solta. É Qorpo Santo que apostrofa de “cães da província” seus concidadãos, reunidos na sádica espera de vê-lo ser declarado louco.
A sequência de cenas e os personagens de Cães da província são elaborados com raro tirocínio. Quem lê um romance tão ilustre, injustamente desconhecido, não imagina que ele foi aceito pela PUC-RS como tese de doutorado em Literatura. Bons tempos aqueles, em que a proficiência nessa área do conhecimento podia ser demonstrada assim, e não por meio da colagem subserviente das teorias em moda. Entre muitas, uma passagem evidencia a capacidade quase shakespeariana – em termos de comparação com o bardo inglês, é sempre quase – do escritor, merecendo destaque.
Nela, Qorpo Santo está batendo um papo com Napoleão III (sua maluquice lembra a do Rubião de Quincas Borba) quando o criado, rebatizado de “Inesperto”, anuncia a visita de Inácia, a ex-mulher muito disposta a matar saudades de um modo bastante prático. O imperador francês, depois de recompor sua indumentária anteriormente espalhada pela casa, assiste a um episódio passional em que o dramaturgo acaba esbofeteando Inácia e pisando-lhe o pescoço. Quebrando o tom trágico da cena, o macaquinho de estimação de Qorpo Santo pula de cima de um armário e agarra-se ao jaquetão de seu dono e começa a desfazê-lo em tiras. A todas essas, Napoleão III, obviamente figura do delírio de Qorpo Santo, sentencia estar presenciando uma “tempestade tropical”.
É claro que a paráfrase não faz justiça à cena, assim como nenhum comentário pode fazer justiça ao romance magistral. Se falta algo para Cães da província equiparar-se aos romances realmente grandes de nossa literatura, é um pouquinho mais de esmero no acabamento do estilo (mas bem pouco mesmo). E, quanto ao desfecho, com alguma razão muitos leitores vão achá-lo pouco digno do drama vivido por Qorpo Santo.
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