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A encarnação do intertexto | Jornal UNIFAL-MG

A encarnação do intertexto


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Mineiro de Cruzília, Caio Junqueira Maciel se define como um “escritorzinho das encruzilhadas” sempre atacado de “coceira peterpânica”, a qual lhe permite nunca deixar extraviar a criança que um dia foi. Seu livro mais recente, Dia das mãos (2022), evidencia as razões do escritor (o diminutivo é modéstia para cingalês ver) ao sublinhar sua consideração da leitura e da escrita como atividades que só fazem sentido se forem prazer e brincadeira. Sorte do leitor: as 60 crônicas que compõem o livro são de uma leveza que só costumam atingir os grandes cultores do gênero: um Drummond, um Rubem Braga, um Verissimo.

A posição existencial de Caio (nascido Luiz Carlos) nos últimos anos facilita-lhe as coisas; professor aposentado, tem podido dedicar-se inteiramente a ler, viajar e escrever. Além de cuidar dos filhos de seus filhos, que lhe mereceram um volume de poemas intitulado Era uma voz – Sonetos só para netos (2005). E o cruziliense tornou-se, depois de poeta irrequieto e eventualmente desbocado, também o romancista de Um estranho no Minho (2020), ambientado na cidade portuguesa de Braga, onde ele viveu por algum tempo.

Só pelos títulos já se desconfia: Caio é a própria encarnação da intertextualidade. Seu verdadeiro tique-nervoso trocadilhesco atesta uma tessitura verbal feita do espelhamento constante entre o autor, outrora bissexto, e o leitor desde sempre compulsivo. Habitante dos arredores de Sabará, o escritor perdeu na inundação de sua chácara, obra de uma cheia do Rio das Velhas, 90% de uma biblioteca que somava 15 mil volumes, número que, por si só, diz tudo da voracidade leitora a reverberar nas muitas referências que pululam ao longo de Dia das mãos.

Esse título é um trocadilho e uma retextualização. A crônica que abre o volume, ao mesmo tempo que evoca Dona Nicota, mãe do autor, parafraseia em ponto menor a peça As mãos de Eurídice (1950), de Pedro Bloch, um dos grandes sucessos do teatro brasileiro. As recordações familiares funcionam, desde o início, como o diapasão do livro, pois, trafegando por variados caminhos, Caio retorna sempre ao fio memorialístico, de modo que o livro também pode ser lido como um esboço de autobiografia. E também isso lhe dá sabor.

À mãe segue-se o pai, “Sô Juca”, farmacêutico que “receitou” a ela 14 filhos, e então o andamento da coletânea fica estabelecido desde as primeiras páginas. Os textos são curtos, alguns mesmo curtíssimos, tendo sido boa parte deles publicada anteriormente em redes sociais. Sempre nos surpreendem com a engenhosidade de trocadilhos na linha destes, que parodiam o Salve, Rainha: “Dos anos 30 até agora, os municípios mineiros multiplicaram-se, são mais de oitocentos, e as namoradas estão por aí, sonham e jequitinhonham (…) gemendo e chorando no Vale do Rio Doce, mas buscando vida, doçura em Boa Esperança”. Pelo final da segunda crônica que tematiza o pai, também “empresário dos sonhos” ou dono do cinema de Cruzília, é possível perceber que a vocação de pândego vinha de longe:

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De outra feita, o filho do Juca, num fogaréu dos diabos, entrou no circo que tinha na

cidade e dançou com uma das cantoras do Duo Siriema. Sô Juca foi informado disso logo

na manhã seguinte, pelos funcionários da fábrica de laticínios. Ao chegar em casa,

perguntou pra sua mulher: “Nicota, no que foi mesmo que Luiz Carlos se formou?”

D. Nicota, indignada, respondeu: “Ora, Juca, já se esqueceu? Nós fomos na formatura

dele no ano passado, curso de Letras, na Federal!” Sô Juca replicou: “Pois acho que ele

se formou pra palhaço…”.

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Mas nem só de humor se faz Dia das mãos. O autor também, por vezes, se enternece e enternece o leitor, como quando lembra ter passado do riso ao choro ao perceber que sua filha de dez anos sabia de cor uns versos do poema “Trem de ferro”, de Manuel Bandeira.

Dessa primeira parte, intitulada “Em família”, Caio salta para “Minas Gerais, uai”, sequência de textos que abordam aspectos da mineiridade, com abundantes referências a Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade e Dantas Mota, o poeta de Aiuruoca que ele conheceu em pessoa, nas funções de advogado e político interiorano, e cujos versos resolveu, depois, estudar em sua dissertação de mestrado. É outra das dimensões que se espraiam – passe o verbo tão pouco adequado à montanhosidade de Minas – pela coletânea, de modo que outra obra rascunhada em Dia das mãos, pode-se considerar, é um pequeno manual de “trens” mineiros.

O segundo segmento do volume evoca aqueles antigos domingos interioranos, feitos da espera pela missa, à qual se seguiam o footing na praça e a sessão de cinema. Aí também salta aos olhos e ouvidos o envolvimento do cronista com os arredores de sua terra natal, especialmente com o Pico do Papagaio, já situado em terras aiuruocanas. É quando Caio nos informa que sua cidade se orgulha de abrigar um museu dedicado ao mangalarga marchador, raça de cavalo desenvolvida por ninguém menos que o Barão de Alfenas, que por sinal nada teve a ver com Alfenas, mas é nome de praça em São Thomé das Letras e tem seu retrato pendurado numa parede da igreja matriz dessa cidade zerramalhística.

De Minas a perspectiva se amplia para o Brasil, numa sequência de textos menos empolgante – será porque o Brasil desses últimos anos andou deprimido e deprimente? Logo em seguida vem a parte das “Leituras”, no transcurso da qual, entre várias histórias, o cronista empreende reescrituras de textos importantes da literatura brasileira, como a do conto “Um homem célebre”, de Machado de Assis, cujo desfecho é “corrigido” pela colagem de um trecho de Os Buddenbrooks, romance de Thomas Mann. Por falar em romance, no segmento que trata dos sonhos e do cinema – outra homenagem ao pai – desponta, como por acaso, a hipótese que daria um belo projeto narrativo: “Pode até ser que seja fake news, e até acho que um dia virá o maior dos desvendadores, tipo assim ‘nunca foi criado o mundo’, ‘Deus não está nem aí’ e por aí vai”.

Ainda sobre fake news, vale a pena recortar este trecho de “O Surrealismo está em nós”:

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Com essa onda de fake news, me deu comichões de sair por aí espalhando surefakes, como

esclarecer que Vinicius de Moraes, na verdade, foi batizado com o nome de Gervásio.

Rui Barbosa era viciado em araticuns. João Ubaldo Ribeiro era alérgico a picolés de

groselha. A esposa do ex-presidente Figueiredo ficava excitada ao chupar pastilha Valda.

Meio-Quilo, aquele anão palhaço que acompanhava Fred e Carequinha, tinha horror da

palavra esparadrapo…

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Ninguém dirá que foi sem perceber: na última parte, Caio retoma o veio memorialístico, aliás nunca abandonado. Entre as crônicas que compõem “Bilboquê e outros objetos diletos”, talvez a mais reveladora seja aquela na qual o interesse do menino cruziliense pela poesia é atribuída à beleza da antiga liturgia católica (“O terço, o texto”). Mas é na penúltima – mesmo havendo na última uma deliciosa anedota sobre o crítico Eduardo Frieiro – que o escritor atinge seu ponto alto na brincadeira com a linguagem:

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Entretanto, há os defensores de uma origem pagã da expressão: teria sido Hércules o

primeiro a dizê-la (…). Há também que a frase foi enunciada pela bela Helena de Troia,

que disse a Menelau que ia deixá-lo, pois se apaixonara por Páris, simples assim.

Há uma versão de que a frase nasceu na conquista da América, quando Colombo teria

afirmado aos índios: “La terra è nostra, semplice como questa”, e, não sei por quê,

o índio respondeu em espanhol: “así de simple es el carajo”. Cientistas garantem que

o pioneiro dessa frase foi Einstein, que a disse logo após ter demonstrado que E = mc²,

e berrando em bom alemão: “So einfach ist das”.

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Título: Dia das Mãos
Autor: Caio Junqueira Maciel
Gênero: Crônicas | ‘Prosoema’
Ano da edição: 2022
ISBN: 978-65-5900-394-5
Selo: Urutau

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