Explicação do fim do mundo

No já longínquo ano de 1998, Jacques Attali fazia estas duas previsões:

O transporte da voz logo virá a ser acompanhado de forma econômica pelo da imagem
e dos dados. Em 2005, será possível veicular imagens em banda larga no mundo inteiro.
Surgirão telefones celulares com telas em miniatura, permitindo ver filmes e receber
televisão e Internet, além de promover videoconferências a preços baixos. O telefone,
o computador e a televisão se fundirão no computevê. (…)
A cabo ou por satélite, os consumidores terão acesso a bancos de dados documentais,
culturais e temáticos de infinita diversificação. Decodificadores darão acesso à Internet.
A televisão tornar-se-á uma aplicação informática como outra qualquer; qualquer um
poderá inclusive criar sua própria cadeia, como um site na Internet. Ela se fundirá com
o computador, no computevê.

Parece que, tirando a palavra computevê, as profecias estavam perfeitamente realizadas um quarto de século depois. É o que se verifica com boa parte da futurologia exercitada no livro Dicionário do século XXI, publicado no Brasil três anos depois de sair na Europa. O autor havia sido assessor do presidente François Mitterrand, da república francesa, quanto contava apenas 27 anos; nascido na Argélia, ele é hoje um octogenário que publicou dezenas de livros, incluindo de tratados de economia a romances, teatro e até um conto para crianças – humanista às antigas, pois, embora às vezes seja apodado de pensador “pós-moderno”.

O Dicionário do século XXI inclui verbetes óbvios (por necessários) como “guerra” e “ecologia” e outros que ainda não fazem parte do nosso vocabulário, como “clonimagem” e “cocooning”, além de criações neológicas que podem soar um pouco estranhas, como “Cibérbia” e “hiperclasse”. Nele, Attali aliou seu conhecimento enciclopédico a uma imaginação que chega, aqui e acolá, a parecer meio delirante. Para o bem e para o mal, grande parte do futuro que ele imaginou ainda não se tornou presente, pois do contrário, considerando a parte pessimista, a humanidade já estaria extinta.

O lado utópico do livro se vincula especialmente às possibilidades da tecnologia e à esperança de que os seres humanos aprendam finalmente a arte de se tolerarem mutuamente e impedir que a ganância destrua a Terra. O lado distópico mistura os abusos da mesma tecnologia (a serviço da mesma ganância, ou da vaidade infinita dos indivíduos) e as várias modalidades de catástrofe nuclear e ecológica que grande parte da humanidade parece desconhecer ou fazer de conta que não surgem cada vez mais nítidas no horizonte da História.

Não é possível, portanto, desqualificar Attali como catastrofista histérico nem como utopista ingênuo. Suas previsões, por vezes, parecem totalmente improváveis, avizinhando-se da ficção científica mais aparentada com o fantástico. A vizinhança com a literatura é evidente também no emprego eventual de certa linguagem poética, até chegando a enigmática em umas poucas passagens. Quando descortina o fim do mundo, infelizmente soa muito mais convincente, até porque seu panorama é lastreado em dados tão abundantes quanto confiáveis sobre populações, recursos materiais e condições climáticas. Sua preocupação com a água é quase obsessiva, e com toda razão, tendo-o levado a imaginar cenas como icebergs sendo rebocados desde o continente antártico até a Austrália, onde a escassez hídrica atingiria um ponto sem retorno.

Existem previsões já claramente falhadas, como a de que “a geopolítica tornar-se-á pacífica”, com Jerusalém transformada em capital de um mercado comum dos países mediterrâneos. Mas esse sonho é logo desfeito pelo próprio profeta, que diz: “Esta evolução, absolutamente idílica, naturalmente não ocorrerá, pois a política tem mais a ver com Shakespeare que com Andersen.” A alternativa à utopia, porém, Attali adverte que inclui o fim da democracia, o enlouquecimento coletivo e o desastre total – atômico ou causado pelo colapso da natureza: “não existe uma saída de emergência do planeta, exceto a que leva ao Inferno”.

As contradições fazem da obra um saudável exercício de dialética. Há mais literatura nas lacunas do texto, cuja porosidade deixa espaço à imaginação do leitor. Diferente de um profeta à Nostradamus, Attali se propõe como conselheiro a apresentar um mundo de futuros acontecimentos às vezes reciprocamente excludentes, mas sempre perfeitamente plausíveis. A soma desses futuros compõe um tratado pelo qual fica demonstrado, mais do que tudo, o rápido esgotamento das reservas naturais de todos os tipos e, junto com elas, do tempo que a humanidade tem para reverter o processo destrutivo. O autor define assim o lado sombrio de suas previsões: “PESSIMISMO –  Higiene mental da ação, veneno da imaginação.”

Algumas coisas que Attali dá como certas parecem cada dia mais difíceis de ocorrer. Uma delas é a divisão da China, ficando Pequim reduzida a capital da “China do Norte”. Outras soam cada vez mais realizáveis, como a reconquista da Sibéria pelos mesmos chineses – ele recorda que aquele território gelado e imensurável em riquezas minerais foi incorporado ao império russo apenas em 1850, já estando em boa parte ocupado por pessoas nascidas na China. Outra questão importante, no caso: o aquecimento global deve transformar a Sibéria na maior extensão de terras cultiváveis do mundo, de tamanho semelhante às que aparecerão no Canadá, sendo que a China tem a segunda maior população do planeta e precisará, mais cedo ou mais tarde, daquilo que os nazistas usavam chamar Lebensraum (“espaço vital”).

Em seu conjunto, o Dicionário do século XXI é uma das mais sérias advertências já feitas quanto aos rumos que a civilização, de modo progressivamente acelerado, vem tomando desde a primeira revolução industrial. Se não fala de máquinas voadoras semelhantes a gafanhotos, como o impressionante último livro da Bíblia, escrito na ilha grega de Patmos pelo caçula de Zebedeu (e também conhecido como “Livro das Revelações”), semeia no imaginário do leitor uma multidão de quimeras orgânicas e factícias que, cada dia um pouco mais, vão se parecendo com a estranha fauna de humanoides e artefatos “inteligentes” a se espalhar pelo planeta. Sem dúvida, leitura muito recomendável nestes tempos de vibração apocalíptica.


Título: Dicionário do século XXI
Autor: Jacques Attali
Gênero: Dicionários
Ano da edição: 2001
ISBN-10: 8501059366
ISBN-13: 978-8501059369
Selo: Record


Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas.

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