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Gênio dorminhoco

Aos pais que se preocupam com seus filhos que querem dormir até o meio-dia, aqui vai um consolo: René Descartes, um dos filósofos modernos mais importantes, era preguiçoso igual. Isso não o impediu de revolucionar o pensamento ocidental, que andava patinando havia um milênio em comentários e variações sobre as obras de Platão e Aristóteles. Mais, ainda: Descartes produziu bastante tardiamente sua obra, tendo vivido até bem depois dos 30 anos como um quase perfeito vadio. Ressalva ao otimismo parental-poliânico: podia-se permitir a vagabundagem porque era rico e porque tinha, em suas leituras, um aproveitamento muito acima da média.

Esse perfil se depreende do livrinho Descartes em 90 minutos (1997), que faz parte da série assinada pelo escritor e professor britânico Paulo Strathern e publicada, no Brasil, pela editora Jorge Zahar. A mesma coleção traz leituras apressadas de outros filósofos importantes, numa lista que vai de Confúcio a Wittgenstein. É claro que não se pode esperar grandes profundidades de uma proposta assim, mas o volume cumpre bem a função de apresentar o leitor ao pensamento de cada filósofo.

Talvez enfatize um pouco mais as biografias do que seria desejável. No caso de Descartes, nascido na França em 1596, as referências à obra são um pouco genéricas demais. Mesmo assim, é possível ter uma ideia do corte que o pensamento cartesiano representou numa tradição filosófica ainda excessivamente presa à Escolástica. Não passa muito do Cogito e do plano cartesiano (o nome latino do filósofo era Cartesius), de cuja enorme importância para a ciência as aulas de matemática do ensino médio, em geral, não conseguem dar o mais remoto vislumbre aos estudantes – mantendo-os na ideia equivocada de que a matemática consiste em repetir a execução de operações até automatizá-la.

Então, acompanhamos num sobrevoo a vida de Descartes em Paris, para onde se mudou quando recebeu a herança da mãe (ele ficou órfão ainda na primeira infância). Uma vida ociosa e solitária, mas nem um pouco marcada pela dissipação que costuma ocorrer entre jovens ricos longe do controle dos pais: quando teve uma aventura amorosa séria, o filósofo já era um homem maduro, e parece ter sofrido muito quando a criança resultante dessa aventura, uma menina chamada Francine, morreu aos cinco anos.

Tendo-se alistado em exércitos, ele nunca enfrentou de fato o perigo da guerra; aliás, conseguiu nem mudar seu hábito de dormir até tarde. Da primeira vez em que fez tal opção “profissional”, fixou residência na Holanda, onde acabou permanecendo – se descontarmos suas frequentíssimas viagens – por quase toda a vida adulta. Foi a partir de uma visão mística e de alguns sonhos que Descartes encontrou, finalmente, sua vocação: revolucionar o pensamento filosófico, estabelecendo para o conhecimento bases inteiramente racionais. Mesmo assim, entre a decisão resultante desses fenômenos mentais e o momento em que botou propriamente as mãos na massa, ainda gastou sete anos de vagabundagem por vários países europeus, sendo cinco desses anos dedicados a peregrinar para um santuário consagrado à Virgem Maria.

Como quase todos os pensadores importantes, Descartes queria nada menos que refundar a filosofia. Ele só teve notícia dos estudos de Galileu quando o italiano foi forçado pela Igreja a abjurar de sua crença na hipótese copernicana de que a Terra se movia; Descartes, por medo da Inquisição, adiou a divulgação de seu primeiro trabalho, cujo abrangente título era Tratado sobre o Universo. Havia significativas coincidências do pensamento cartesiano com o galileano, mas a principal delas talvez fosse a realização concreta, pelo primeiro, da proposta de “mensurar tudo aquilo que seja mensurável e tornar mensurável o que ainda não o seja”. A geometria analítica de Cartesius criou a possibilidade de medir todo o espaço físico, embora seja cabível lembrar que, quanto ao mental, Kafka observaria séculos depois, em seu diário: “o que é humano não comporta cálculo”.

Mesmo vivendo na Holanda, um paraíso de tolerância religiosa e científica (para os padrões da época), Descartes ficou cismado porque a doutrina católica era totalmente fundada em certezas estabelecidas por glosas agostinianas e tomistas do racionalismo grego. Ora, o princípio gerador daquela que viria a ser a obra cartesiana mais importante é a dúvida: “Penso, logo existo” era um ponto de partida para a demolição da todas as aparências criadas pela percepção sensorial e afetiva do mundo. Nesse particular, se se pensar bem, Descartes nada mais fazia do que enfatizar a rejeição platônica da doxa, a convicção baseada nos sentidos.

Ampliado nas Meditações (1641), o sistema cartesiano enunciado no Discurso do método (1637) acabou resultando numa defesa radical do racionalismo, embora seu efeito prático possa ser uma espécie de solipsismo. Afinal, se a única certeza é a de que estou pensando, em consequência do que se torna inegável a minha existência, talvez isso possa levar à conclusão – à qual outros pensadores, de fato, chegaram – de que todo o restante é ilusão. Não valeu ao filósofo sua precaução inicial: ele foi, como Galileu, acusado pela Igreja de heresia, crime muito mais imperdoável que o puro ateísmo, e só não ficou proibido na universidade holandesa porque a geometria, simplesmente, não tinha mais como ser estudada sem se recorrer ao método analítico que havia criado.

As circunstâncias que levaram à morte de Descartes têm um acento de tragicomédia. O filósofo, que sempre havia sido hipocondríaco e esperava passar dos cem anos, cedeu a contragosto aos apelos da rainha Cristina, da Suécia, para estabelecer-se na gélida Estocolmo; lá, sem precisar de honrarias e muito menos de dinheiro, ele submeteu-se pela primeira vez a acordar cedo e acabou, em pouco tempo, adoecendo fatalmente. A glória europeia de Descartes foi quase totalmente póstuma.

O livrinho traz uma concisa antologia com trechos das principais obras cartesianas. São uns poucos excertos das Meditações e do Discurso do método, que ilustram parcamente a paráfrase do pensamento de Descartes feita pelo antologista, mas pelo menos dão uma ideia da clareza exemplar do estilo do filósofo.

Título: Descartes em 90 minutos
Autor: Paulo Strathern
Edição: Jorge Zahar
Gênero: Coletânea | Biografia
Ano da edição: 1997
ISBN: 9788571104167
Selo: Editora Schwarcz SA

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas).

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