Importunação sexual, estupro e o caso do “beijo roubado”

A imagem mostra a pintura chamada "O Beijo" de Gustav Klimt, em que um casal aparece se beijando, envolvido por mantos dourados e decorados com padrões geométricos e florais. O homem inclina-se para beijar a mulher, que está com os olhos fechados em uma expressão de serenidade. O fundo dourado destaca a intimidade da cena, enquanto o casal está de pé sobre um campo florido.
Pintura “O beijo” (original em alemão: Der Kuss) do pintor simbolista austríaco Gustav Klimt. (Reprodução/Internet)

É preciso começar o exame desse assunto tendo em mente duas grandes viradas legislativas no que tange aos crimes sexuais.

A primeira ocorreu em agosto de 2009, com a lei 12.015, que promoveu uma alteração substancial no tema crimes sexuais. A começar pela própria nomenclatura, considerando-se que o título VI da parte especial do Código Penal que trata dos crimes sexuais deixou de denominar-se crimes contra os costumes para denominar-se crimes contra a dignidade sexual, assim passando a indicar que, para a sociedade contemporânea, há questões muito mais elementares na tutela dos direitos relacionados à temática sexual do que os “bons costumes”, como a exploração sexual de crianças e/ou adolescentes, a liberdade sexual para escolher com quem, como e quando se relacionar, enfim, questões mais propriamente ligadas à dignidade humana em sua dimensão sexual.

Já o segundo grande marco legislativo surgiu em 2018. De início em setembro de 2018, com a lei 13.718, que, por exemplo, alterou a ação penal dos crimes sexuais (doravante, a ação penal cabível para os crimes em questão é a ação penal pública incondicionada) e as majorantes, assim como incluiu crimes novos, como a importunação sexual, a divulgação de cena de estupro etc. E, em seguida, em dezembro de 2018, com a lei 13.772, a qual acabou criando mais um crime sexual (e mais um capítulo, o I-A), qual seja, o crime de exposição da intimidade sexual, ou, mais especificamente, o crime de registro não autorizado dessa intimidade sexual.

À parte, contudo, as atualizações penais e centrando no fenômeno do beijo roubado – tão recorrente, como cediço, nos trotes universitários e nas baladas –, o que acontece hoje é que o beijo roubado, juridicamente qualificável como beijo lascivo, pode ser configurado, a depender do caso, ou como importunação sexual (quando “roubado de leve”, “de raspão”, “de boa”…) ou, se mediante violência ou grave ameaça, como estupro (e.g. sujeito que leva a vítima para o mato e fica lambendo a boca dela…), de modo que é o caso concreto que haverá de definir o tipo penal aplicável, embora seja possível dizer que, em princípio, o beija roubado, que hoje é uma espécie de ato libidinoso recriminado pelo Código Penal, tende a enquadrar-se como importunação sexual.

A fim de se ter uma noção mais clara desses delitos, vejamos, a seguir, em que consiste cada um.

Crime de estupro

Segundo a dicção do Art. 213 do CP, considera-se estupro “[c]onstranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, a pena prevista sendo a de “reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos”.

Destaque-se que o delito de estupro foi alterado em idos de 2009 pela lei 12.015. Até então só se considerava como estupro a introdução do pênis na vagina (leia-se: conjunção carnal), com a consequência de que somente o homem poderia ser tido como o sujeito ativo e a mulher como o sujeito passivo do crime de estupro. Naturalmente, a mulher poderia participar do crime de estupro, mas a única exceção em que poderia figurar como autora girava em torno da possibilidade de a mulher praticar o estupro através de outrem, porventura um doente mental, instigando-o ou manipulando-o à prática do estupro.

Porém, em 2009, com a alteração supramencionada, o tipo penal do estupro se tornou mais amplo (muito basicamente, não se limita mais ao ato libidinoso conjunção carnal, abarcando o ato libidinoso diverso de conjunção carnal), sobretudo porque deixou de ser bipróprio (via de regra, só o homem podia ser o sujeito ativo e a mulher o passivo) para se tornar bicomum (ambos, homem e mulher, podem figurar como sujeito ativo ou passivo do crime de estupro).

Inclusive, com a alteração de 2009, o crime de estupro, por haver se tornado mais abrangente, passou a englobar o crime de atentado violento ao pudor (e.g. sexo anal mediante violência ou grave ameaça) – o que, contudo, não significa que este deixou de existir, mas sim que o crime de atentado violento ao pudor passou a fazer parte do crime de estupro.

Ou, tecnicamente falando: não houve abolitio criminis, uma vez que a mesma lei que revogou o dispositivo do atentado violento ao pudor (art. 214 do CP) aumentou a abrangência do crime de estupro (art. 213 do CP), de sorte que o que houve foi uma continuidade normativo-típica, ou seja, o legislador só mudou o lugar da incriminação do atentado violento ao pudor: de crime autônomo para crime de estupro em sentido amplo (conjunção carnal ou ato libidinoso diverso de conjunção carnal).

Portanto, estupro, hoje, para efeitos crímino-penais, é qualquer ato libidinoso, praticado mediante violência ou grave ameaça, que viola a dignidade sexual da vítima, ou, mais especificamente, sua liberdade sexual.

Outrora, como visto, o estupro era tido como espécie de crime contra os costumes, o que dava a entender que eram os costumes que eram tutelados ou protegidos pela norma. Agora, contudo, concebe-se expressamente o estupro como crime contra a dignidade sexual (máxime enquanto liberdade sexual) da pessoa. Ao menos em primeiro plano, a preocupação não é mais com os costumes sexuais da sociedade, mas sim com a liberdade sexual de cada um para decidir se quer fazer sexo ou não, se quer praticar sexo com este ou aquele, se quer ter relações sexuais hoje ou amanhã.

Daí advindo, a propósito, a possibilidade do estupro até mesmo no contexto do casamento, se um dos parceiros, mediante violência ou grave ameaça, viola a liberdade sexual do outro, desrespeitando o desejo sexual do(a) companheiro(a). O que significa dizer que não existe mais algo como um “dever sexual” para os cônjuges.

Outra informação importante sobre o crime de estupro que se depreende da redação do art. 213 do diploma penal é que se trata de crime que, para se caracterizar, precisa ser praticado mediante violência (leia-se: força física) ou grave ameaça (leia-se: promessa de um mal grave) – embora (e aqui vai uma ressalva importante) seja excepcionalmente prescindível, conforme entendimento jurisprudencial, o contato físico, donde a possibilidade de configuração do estupro por meio da mera contemplação lascívia, tal como acontece, por exemplo, no contexto do que se tem denominado estupro virtual (à guisa de exemplo, pense-se no agente que furta o notebook de determinada mulher, descobre arquivos íntimos dela e que passa a ameaçá-la de divulgação desses arquivos caso ela não pratique atos libidinosos com ele pela chamada de vídeo do WhatsApp).

Ainda, trata-se de crime doloso genérico (embora um autor como Mirabetti exija o elemento subjetivo especial: o querer satisfazer a lascívia), de modo que até mesmo aquele que, por exemplo, pratica o estupro apenas por vingança, sem necessariamente estar sexualmente motivado, terá praticado o estupro. Outrossim, trata-se de crime material, na medida em que exige uma modificação no mundo exterior, no caso, a violência sexual – a despeito daqueles que dizem (como, por exemplo, Damásio) que o crime de estupro pode se configurar como crime de mera conduta quando praticado sem deixar lesão (ou, de todo modo, sem deixar lesão física).

A título de complemento, advirta-se, por pertinente, que, para a maioria da doutrina, stealthing (a prática de o parceiro retirar o preservativo no meio da relação sexual sem o conhecimento do outro) não é estupro, por não ocorrer mediante violência ou grave ameaça. Sendo melhor enquadrável no crime de violação sexual mediante fraude, art. 215 do CP, também conhecido como estelionato sexual, em que o consentimento é viciado por meio de fraude.

Outrossim, advirta-se, por oportuno, que, se as partes são masoquistas (a “turma do couro”…), a princípio não há falar em estupro. Afinal, se adultos, a coisa tende a se resolver pela lógica do consentimento nos limites da razoabilidade dos direitos disponíveis (por exemplo: comer, no sentido literal, um pedaço do parceiro ou matá-lo, mesmo que com o consentimento deste, já extrapolaria os limites do consentimento…).

Por fim, lembre-se das majorantes e das formas qualificadas de estupro (formas preterdolosas: o sujeito ativo age com dolo de estuprar e culpa quanto à lesão grave ou morte… dolo no antecedente e culpa no consequente).

Quanto às majorantes (entenda-se: as qualificadoras trazem um novo mínimo e um novo máximo de pena, ao passo que, as majorantes aumentam a pena de forma fracionária, por fração), verifica-se que a pena será aumentada a) quando houver concurso de duas ou mais pessoas (em especial no caso do estupro coletivo), b) se houver relação mais próxima entre vítima e agente, c) no caso do estupro corretivo (usado para controlar o comportamento social ou sexual da vítima), d) se resultar gravidez, e) se o agente transmite à vítima doença sexualmente transmissível de que sabe ou deveria saber ser portador, e f) ou se a vítima é idosa ou pessoa com deficiência.

Já no tocante às formas qualificadas, no § 1º do art. 213 lê-se que “[s]e da conduta resulta lesão corporal de natureza grave [ou gravíssima] ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos” e no § 2º do art. 213 que “[s]e da conduta resulta morte: Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos”.

De resto, cumpre destacar que, pela lei dos crimes hediondos, dentre os crimes sexuais, o estupro (juntamente com dois outros crimes sexuais, quais sejam, o estupro de vulnerável e o favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual) é tido como crime hediondo, bem como que, segundo entendimento jurisprudencial, a palavra da vítima possui relevante valor probatório (o que não significa valor suficiente, a ponto de prescindir de qualquer outra prova), uma vez que os crimes sexuais, a exemplo do estupro, nem sempre deixam vestígios e geralmente são praticados sem a presença de testemunhas.

Visto o crime de estupro, passemos, na sequência, ao crime de importunação sexual.

Crime de importunação sexual

Conforme o art. 215-A do Código Penal, o crime de importunação sexual consiste no ato de “[p]raticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”, a pena prevista sendo a de “reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave”.

Como se observa, ao contrário do delito de estupro, o crime de importunação sexual, incluído no Código Penal em 2018 pela lei 13.718, a) exige dolo específico, isto é, o dolo (intenção de praticar o ato libidinoso) + o elemento subjetivo especial do tipo ou injusto penal (intenção de satisfazer a lascívia própria ou de terceiro) (tanto que, se o sujeito pratica a importunação sem o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro, como, por exemplo, no contexto de uma vingança ou de um mero trote universitário, não configuraria o crime de importunação sexual, por faltar o desígnio ou desejo específico de satisfação da lascívia); b) é tido como formal, por se tratar de um crime incongruente, vale dizer, faz menção a um resultado (a satisfação da lascívia), mas esta não precisa se concretizar para a configuração do crime; e c) é subsidiário: só se configura se outro mais grave não existir, pois só há importunação se não há estupro (o típico crime “soldado de reserva” de que nos fala Nelson Hungria).

Como exemplos de importunação sexual, podemos pensar no sujeito que, no metrô, masturba-se e ejacula-se em outrem (aliás, foi um caso semelhante a esse que suscitou a criação, em idos de 2018, do crime de importunação sexual…); a passada de mão na festa; os apertos ou apalpadas não consentidos… o beijo roubado, também conhecido como beijo lascivo etc.

Conclusão

Por natural, não temos a pretensão, nos estreitos limites de um artigo de jornal, de esgotar a matéria dos crimes sexuais. Tanto que sequer tocamos, por exemplo, no delito estupro de vulnerável previsto no Art. 217-A do CP da seguinte maneira: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 […] anos: Pena – reclusão, de 8 […] a 15 […] anos”, e que, no assunto em tela, pode se configurar quando a vítima do beijo roubado (que, repise-se, atualmente é compreendido como uma das tantas formas de ato libidinoso), independentemente de violência ou grave ameaça ou mesmo de consentimento da vítima, for menor de 14 (quatorze) anos.

Apenas, o que aqui pretendemos é deixar evidenciado a gravidade de algo como o beijo roubado, por muito tempo tido (em grande medida sob o influxo do machismo estrutural) como “normal” e “inocente”, mas que nos dias que correm pode ser enquadrado como crime de importunação sexual, quando não estupro se levado a efeito mediante violência ou grave ameaça – a despeito de o beijo roubado não ser um ato libidinoso tão óbvio como os de praxe (e.g. conjunção carnal, sexo oral, sexo anal, toque na genitália e/ou nos seios etc.) e, no caso de ser capitulado como importunação sexual (como tende a acontecer), a necessidade de se provar o dolo específico do agente (a intenção de satisfação da lascívia própria ou alheia).


Referência

BRASIL. Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Crimes contra a dignidade sexual: tópicos relevantes. 2. ed., rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2020.

GRECO, Alessandra Orcesi Pedro; RASSI, João Daniel. Crimes contra a dignidade sexual. São Paulo: Atlas, 2010.

GUSMÃO, Chrysolito de. Dos crimes sexuais. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1981.

JESUS, Damásio E. de. Direito penal. 20. ed. Vol. 3. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 131.

MIRABETTI, Julio Fabrini. Manual de direito penal, volume 2: Parte especial, Arts. 121 a 234 do CP – 26 Ed. Rev e atual – São Paulo: Atlas, 2009.


Waldir Severiano de Medeiros Júnior é pós-doutorando em Direito e Justiça (FDUFMG). Mestre e Doutor em Direito e Justiça (FDUFMG). Professor colaborador de Direito no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da UNIFAL-MG. Consultor Jurídico (OAB-MG 216.370). Temas de interesse: Direito, Filosofia, Política e Administração Pública.

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