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JHWH reloaded

Numa cena do magnífico filme A missão (1986), de Rolland Joffé, dois padres jesuítas estão discutindo e um deles lembra ao outro que a Igreja é uma monarquia, não um estado democrático. É tal pressuposto que falta a muitas passagens do livro Os dez mandamentos para o século XXI, publicado em 2004 pelo filósofo espanhol Fernando Savater. A obra pode contribuir para que se repensem aspectos da lei mosaica à luz das sociedades contemporâneas, mas com frequência peca – perdoem o trocadilho – por colocar o terrível Javé na posição de interlocutor acessível à discussão “inteligente” da possível inatualidade dos preceitos que Ele, com as labaredas de seu hálito divino, gravou nas tábuas que Moisés publicaria ao descer do monte Sinai, conforme narra o capítulo 20 do livro do Êxodo.

O aggiornamento proposto por Savater é seu tanto anacrônico. Mesmo assim, as reflexões que ele ensaia, e num estilo que não demanda grande esforço ao leitor, podem ser úteis para quem ache cabível relativizar aspectos do Antigo Testamento. É preciso lembrar, embora a maioria dos autonomeados cristãos tenham pouquíssimo apreço pelas palavras atribuídas a Jesus, que a doutrina pregada pelo profeta nazareno já “editava” alguns dos mais iracundos, além de resumir notavelmente os 613 preceitos que expressam o modo hebraico de ver o mundo – cada dia há mais “cristãos” que não perdoam a Jesus haver perdoado a adúltera, o cobrador de impostos e o ladrão crucificado à sua direita, que certamente devia ter sido posto à esquerda e ostentar um dedo a menos.

Savater escreveu seu livro a partir do programa de TV ao qual se dedicou durante um ano. Antes de entrar na discussão dos mandamentos, ele faz uma rápida introdução histórica ao tema. Relembra, por exemplo, que o deus dos hebreus resultou da superposição do Javé primitivo ao Elohim dos cananeus; eram, por assim dizer, duas “personalidades” divinas bem diferentes. Coloca em perspectiva, também, a função civilizatória da lei mosaica no tempo em que ela surgiu. Finalmente, parte para a análise dos mandamentos, iniciando cada capítulo por um “bate-papo” (na verdade, monológico) em que o ouvinte imaginário é Deus. Aí é que o artifício soará um pouco desrespeitoso para quem professe qualquer das religiões monoteístas cuja matriz é a lei mosaica. Afinal, o nome de Javé é um tetragrama impronunciável – não se pode nem dizê-lo, muito menos dirigir à divindade graçolas como se se estivesse conversando com um parceiro de birita.

Mesmo quem fizer essa ressalva talvez reconheça que o raciocínio de Savater está correto (mas, como disse Unamuno, “ter razão é muito pouco”) em vários pontos. O primeiro deles é relembrar que quase todas as guerras têm como pretexto a religião. O filósofo apresenta dados que, infelizmente, terão ficado desatualizados desde que o livro foi publicado pela primeira vez: “Em 5.500 anos de história, para não ir mais longe, produziram-se 14.513 guerras que custaram 1,24 bilhão de vidas e nos deixaram um respiro de apenas 292 anos de paz”. Adiante, discute complicações como a viabilidade de “honrar pai e mãe” num mundo em que os conceitos de paternidade e maternidade se complicaram grandemente, primeiro devido às possibilidades da reprodução vicária por meio de barrigas de aluguel etc., depois em função do supermercado identitário (ao qual, frise-se, Savater não faz qualquer restrição) em que se transformaram as principais sociedades do Ocidente. Em certa passagem, o filósofo lembra que ainda existem países onde a homossexualidade e o adultério são punidos com apedrejamento, prisão ou modalidades penais alternativas.

Nem sempre, porém, a conversa moderninha soa cabível. Ao falar do sexto mandamento, Savater começa “aconselhando” Deus a considerar a opinião de Woody Allen sobre sexo. Aí a licença ficcional que o escritor se concede chega ao ponto de desprezar um dos atributos essenciais da divindade, que tanto trabalho deu aos teólogos da Escolástica para seu estabelecimento teórico: a onisciência. Pouco adiante, ao dizer que a poligamia é coerente com a fisiologia da reprodução (pois um mesmo homem pode fecundar muitas mulheres), Savater parece ignorar que o mesmo argumento havia sido usado por Schopenhauer mais de um século e meio antes, no livro As dores do mundo (1850). O mesmo se diga quanto à relatividade do roubo, já teorizada pelo Padre Antônio Vieira no Sermão do Bom Ladrão em meados do século XVII e pelo autor anônimo da Arte de furtar (1743), obra por muito tempo atribuída ao mesmo jesuíta português.

Do campo da ética, onde seria de esperar que a discussão se mantivesse, por vezes o autor resvala para o domínio do entretenimento. Sim, pode ser útil relembrar a “fake news” sobre a invasão do planeta por extraterrestres, difundida pelo cineasta Orson Welles por meio de um programa de rádio que, em 1938, fez milhares de pessoas confundirem ficção com realidade. Isso a propósito de discutir o mandamento “Não levantarás falso testemunho”, pois, tendo como ponto de partida aquele caso – e mais ainda no Brasil dos últimos anos –, é aconselhável enfatizar que o conceito de mentira ficou bastante ampliado desde que poderosos grupos de comunicação ganharam a capacidade de fabricar a versão do real na qual lhes interessa que o público acredite. Com óbvias e assustadoras consequências sobre nosso já combalido conceito de democracia. Ou seja, a “diversão” nunca é tão inofensiva como as pessoas parecem acreditar.

Nos últimos dois mandamentos, o livro perde bastante de sua intensidade. Ou a mulher do próximo e as coisas alheias já estavam supostas no sexto e no sétimo mandamentos, ou Savater estava meio cansado de seu empreendimento. De qualquer modo, Os dez mandamentos para o século XXI continua sendo uma leitura interessante. Talvez, porém, alguns leitores consigam chegar à relativização moral pretendida pelo filósofo espanhol lendo apenas um conto de Machado de Assis: “A igreja do Diabo”. Seria uma enorme economia.

Título: Os dez mandamentos para o século XXI
Autor: Fernando Savater
Gênero: Filosofia
Ano da edição: 2005
ISBN-10: ‎ 8500015691
ISBN-13: ‎ 978-8500015694
Selo: Ediouro

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas.

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