Nariz extraviado e outros despautérios

Durante a leitura do volume no qual se incluem “O nariz” e “Diário de um louco”, é nítida a sensação de estar lendo Franz Kafka, apesar de os dois contos do russo Nikolai Gógol terem sido publicados na primeira metade do século XIX, ou seja, quase um século antes de surgir a obra do escritor tcheco. Tarefa inglória, muitas vezes, a de investigar relações intertextuais: quem já leu O castelo (1926), do mesmo Kafka, talvez tenha sentido nele um cheiro danado de Dostoiévski. A literatura de um país semifeudal em plena era da economia burguesa, enfim, parece ter lançado algumas das mais importantes bases do que conhecemos como Modernismo.

Gógol: é curioso que ele seja ignorado (no sentido de não lido) por muitos estudiosos da ficção moderna. Bastam as duas narrativas mencionadas para situá-lo como inegável precursor das fábulas absurdas do escritor tcheco. Sua fórmula é aparentemente simples, no caso de “O nariz”: usar uma técnica realista para relatar a bizarra situação do alto funcionário Kovaliov, que certo dia acorda sem nariz. Toda tentativa de explicar a situação é infrutífera, mesmo para o profissional que “tivera a honra” de barbear Kovaliov e se surpreende, no café da manhã, ao deparar com o órgão faltante do outro dentro do pão. Ele bem que tenta livrar-se do insólito órgão, mas é impedido por policiais quando tenta jogá-lo fora. Enquanto isso, Kovaliov pensa, inicialmente, estar sendo vítima de uma alucinação, mas termina por convencer-se de que realmente está sem o nariz.

Saindo à rua, o desnarigado procura disfarçar a superfície indevidamente lisa do rosto e, para seu espanto – claro que o do leitor não é menor –, encontra seu nariz a perambular pela cidade, e vestindo um uniforme militar. Kovaliov dirige-se à singular aparição nestes ridículos termos: “O senhor não é meu próprio nariz?”. Não trataremos aqui do desfecho, porque seria roubar ao leitor o prazer de ler o conto gogoliano.

Quanto ao “Diário de um louco”, registra o cotidiano de um funcionário paranoico que, já na segunda página, ouve uma conversa entre cães, conversa com implicações relevantes para sua convicção, tão delirante quanto escutar animais em colóquio, de que a filha do diretor de sua repartição, moça de condição social muito superior, anda dirigindo-lhe olhares interessados. E, porque os cães são “pessoas simpáticas”, ele cogita poder chegar ao coração da pretendida namorada por meio de pistas fornecidas em cartas escritas por uma cadela… A epistológrafa em questão se chama Medji; na imaginação do protagonista, ela destina as mensagens a outra cachorra. Mas logo, por meio dessa mesma correspondência, frustram-se as expectativas amorosas do pobre funcionário, pois Medji acaba deixando bem claro que a moça está namorando um cadete bem mais jovem que o pobre apaixonado, e muito melhor partido como futuro noivo.

Justamente no momento da decepção amorosa, o delírio de Kovaliov começa a agravar-se. Ele se imagina rei da Espanha e deixa de trabalhar na repartição onde é empregado: por que um rei trabalharia, afinal? Suas ideações vão ficando crescentemente bizarras; convence-se, por exemplo, de que as pessoas não podem ver seus narizes – outra vez, o nariz! – porque eles habitam a Lua. A anotação de datas no “Diário” vai-se tornando caótica, com janeiro vindo depois de fevereiro e outros anacronismos. “Esqueci a data. Não houve mês tampouco”, ele escreve em certa passagem.

Quando é internado num hospício, o protagonista imagina-se viajando para Madri, não sem ficar admirado com a rapidez do trajeto. Sua linguagem vai-se tornando cada vez mais estapafúrdia, e no final ele faz um apelo imaginário à mãe, qualificando-se como “filhinho doente”. Em vários aspectos, o diário inventado por Gógol corresponde à evolução de um quadro clínico padrão daquilo que na época se chamava “demência precoce”; evolução um pouco apressada, talvez, devido à dimensão reduzida que um conto devia ter. A propósito, é de notar que o próprio escritor era sujeito a episódios depressivos, à megalomania e a crises religiosas – sempre vizinhas do transtorno mental, como demonstram os abundantes relatos a respeito da loucura em obras literárias dos séculos XIX e XX.

Cães, decepção amorosa, mania de grandeza progredindo para a sandice total: teria Machado de Assis, enquanto elaborava seu Quincas Borba (1891), lido Gógol em tradução francesa, já que era um habitual frequentador da Revue des Deux Mondes no Real Gabinete Português de Leitura? É uma interessante hipótese, ao que parece ainda não aventada por nenhum estudioso da obra machadiana.

Título: O nariz | Diário de um louco
Autor: Nikolai Gógol
Tradução: Roberto Gomes
Gênero: Ficção | Contos Russos
Ano da edição: 2000
ISBN: 9788525410399
Selo: L&PM Pocket


Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

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