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Como desperdiçar uma bela ideia

Alguns podem conhecer Long John Silver de lugares menos recomendáveis, mas a origem do nome é o personagem do livro de aventuras A ilha do Tesouro (1883), do escocês Robert Louis Stevenson. Essa obra, com seus tesouros imaginários enterrados em ilhas remotas e sinalizados por mapas esquecidos em baús, encantou gerações de meninos; foi transposta para as histórias em quadrinhos e para o cinema, sempre com grande sucesso. Stevenson, que viveu apenas 44 anos, também é autor de outro dos livros mais conhecidos da literatura de língua inglesa, O estranho caso do Dr. Jekill e do Senhor Hyde (1886), conhecido entre nós como O médico e o monstro. Uma história bem simbólica da ambiguidade humana e que viria a ser bastante corroborada pelas descobertas do século XX sobre a complexa – por vezes, atordoante – dinâmica das relações entre consciente e inconsciente.

Em O clube dos suicidas (1878), que escreveu aos 28 anos, o ficcionista perdeu a chance de fazer seu primeiro grande livro. A ideia é muito boa, e, como o restante da produção do autor, remonta ao imaginário mais bizarro do Romantismo, naquela época já um tanto datado esteticamente. A motivação mórbida do enredo tem evidente parentesco com as fantasias de um Byron ou um De Quincey, aquele que sacou de sua cartola mágica, debaixo da qual fervilhava uma mente ao mesmo tempo lúcida e delirante, o singular Do assassinato como uma das belas-artes (1827), que parece ter influenciado o Edgar Poe na concepção do conto “O coração delator”, de 1843,  e o Dostoiévski de Crime e castigo (1866), sem contar – para quem gosta de explorar relações intertextuais – o filme Rope (1948), de Alfred Hitchcock, aquele feito numa única tomada de cena, cujo título foi traduzido no Brasil para a exageradíssima expressão “festim diabólico”.

Era uma ideia muito original, que a pressa do jovem escritor malbaratou nessa narrativa até bem conduzida, mas carente de substância humana crível. O protagonista da novela stevensoniana é um príncipe da Boêmia que, por algum motivo, vive em Londres na época áurea do império britânico. Junto com seu ajudante-de-ordens, o Coronel Geraldine, ele conhece durante um passeio noturno o rapaz que lhes dá notícia da existência do tal clube. Fazendo-se admitir por pura curiosidade na estranha agremiação, o príncipe e seu auxiliar acabam enredados na trama em que a honra da palavra empenhada os obriga a participar de uma espécie de roleta-russa: a cada noite, sorteavam-se entre os presentes dois associados, um dos quais deveria matar o outro. A questão toda era: os membros do clube queriam suicidar-se, mas não tinham coragem. Até aí, a história é interessante. Mas, de acordo com o resultado do sorteio, já na segunda ou terceira noite em que comparece ao clube, o príncipe Florizel deveria sujeitar-se a ser morto por um desconhecido. Os membros da bizarra sociedade, evidentemente, tinham cada qual sua razão para morrer; Florizel, não, e tampouco o Coronel Geraldine, que sequestra seu amo e o leva numa carruagem antes que o ato seja consumado.

Daí por diante, o enredo se desdobra numa embrulhada que alguns consideram precursora do romance policial. O presidente do clube dos suicidas, vilão da história, termina castigado com a morte e tudo desemboca num hino à nobreza de caráter do príncipe Florizel, que, na verdade, havia fraquejado e até agradecido a Geraldine por tê-lo livrado de cumprir o compromisso assumido. Tamanha simploriedade psicológica estraga a abordagem pioneira, na ficção, de um tema tão terrível e importante como o suicídio, que evidentemente não se reduz à oposição entre nobres sentimentos aristocráticos e diabólicos intentos de homens malvados. Vejam-se os casos de Judas, o apóstolo traidor, e de Petrônio, o “árbitro da elegância”, que parece ter inventado a morte voluntária em banheiras com água morna.

A estrutura narrativa já apresenta algumas das qualidades que tornariam Stevenson um clássico, mas o estofo psicológico dos personagens é bem escasso, tornando a novela, por sua estereotipagem dos caracteres, uma leitura decepcionante. Em tempos de demanda frenética por filmes e séries de TV focalizando os mais obscuros desvãos da condição humana, O clube dos suicidas seria uma excelente matriz narrativa para se adaptar aos formatos audiovisuais – já que o interesse lucrativo da indústria cultural não deixa de pé qualquer tabu. Se algum produtor tupiniquim gostar da ideia e resolver transpô-lo para as telas, não se esqueça de mandar uns cobrinhos para o absconso escrevinhador da província.

Título: O Clube dos suicidas
Autor: Robert Louis Stevenson
Tradução: Eliana Sabino
Gênero: Romance | Suspense | Mistério
Ano da edição: 2010
ASIN: ‎ B00A3EZLSE
Selo: Rocco Digital
Formato: E-book

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas).

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