Minimal e desbocada

Atualizado em 20 de julho de 2024 às 10:12

Quando publicou Az mulerez – grafado assim mesmo, mais um til sobre o l que demanda ginástica impossível ao teclado do notebook – Natércia Pontes contava apenas 24 anos. Formada em radialismo, a escritora cearense é filha de Augusto Pontes, que foi secretário estadual de Cultura em seu Estado e assina o interessante prefácio desse livrinho de estreia.

Livrinho no tamanho, pois sua voltagem é bem mais alta do que fazem supor o formato da edição e seu reduzido número de páginas. Será uma pena se, como tem feito Chico Buarque com algumas de suas melhores canções, Natércia renegar essa obra por receio de ser crucificada no Gólgota do politicamente “correto”. Az mulerez é uma obra original também por nadar na contracorrente do pietismo identitário autocomplacente que ameaça virar epidemia na cultura brasileira.

A autora agora tem livros publicados por grandes editoras. Az mulerez foi uma edição independente e virou raridade; o leitor que tentar comprá-lo talvez chegue atrasado à corrida: às 10h44 do último domingo, havia apenas um exemplar à venda na Estante Virtual. Que editor terá a ousadia de publicar uma segunda tiragem, só o tempo dirá – como reza o clichê.

De saída, a narradora revela-se mais freudiana que o analista de Bagé, personagem que dá título à obra-prima de Luis Fernando Verissimo, um best seller já não muito longe das 200 edições. Freudiana e freudiável, com perdão do neologismo: Natércia escavaca a vida sexual de suas personagens, ou, mais precisamente, as variações da infelicidade derivadas de desajustes afetivos. Ela pinta um quadro nada apologético da condição feminina, e talvez a heterodoxa ortodoxia vigente não esteja disposta a conceder-lhe indulgência em virtude do fato de ser mulher. Bonita mulher, por sinal, o que também vai acabar sendo considerado pecado.

Por que narradora? Porque ela tem que ser mulher, não somente devido a ser projeção da autora, mas também por demonstrar solidariedade em relação às personagens. Isso fica evidente no perfil “Jessica, cheddar e pepino.”, encerrado com o lamento “Pobre Jessica”, que tem motivo na penúria existencial da “pobre menina” (assim começava a historinha) portadora de buço, barba, celulite e “estrias prematuras”, condições que não lhe permitem ser “popular” na sua turma, muito menos atrair os olhares dos rapazes. O lamento pode ser estendido a quase todas as protagonistas, cujos perfis são organizados em ordem alfabética de seus nomes, começando com Ana e terminando com Zaira. A maioria absoluta delas vive uma vida miserável em cuja receita o principal ingrediente é a falta de encantos femininos. Nenhuma é mais patética do que a empregada doméstica Odinalva, cuja perspectiva amorosa se restringe a admirar um pôster do cantor Daniel; alguns dos termos usados pela narradora para caracterizar Odinalva, hoje talvez dessem processo judicial.

As historinhas são aqui chamadas de perfis porque quase não têm enredo. O que existe ali de propriamente narrativo são cenas rápidas que servem para a caracterização das personagens. Homens, entram alguns que são parceiros ou ex-parceiros das protagonistas, em geral agraciados com adjetivos como “burro pra c*” ou, voltando às obsessões da narradora, menções à proporção decepcionante de suas genitálias. Natércia é cruel para todos os lados, pois, como ocorre com a literatura crítica produzida desde o Realismo, no século XIX, analisar a condição humana de modo objetivo e honesto costuma resultar, o mais das vezes, em retratos deprimentes. É um valor inegociável da grande literatura oferecer-nos um espelho da nossa própria precariedade humana. A grande literatura é o contrário da propaganda ideológica, seja esta de esquerda ou de direita.

Como as letras do alfabeto são apenas 23 e cada perfil ocupa uma página, Az mulerez é completado por uma sequência de ilustrações em igual número, cada qual de um artista diferente, outra vez os nomes em ordem alfabética. É, portanto, um livro conceitual, cujo projeto gráfico integra o significado global dos textos. Natércia se inscreve, por essa opção, na já remota linhagem da literatura moderna de vanguarda, que buscava emancipar o público ampliando sua capacidade estética e intelectual. Alguém devia tornar-se mais inteligente e mais sensível experimentando os efeitos da arte, objetivo claramente esvaziado nestes tempos pós-utópicos em que não é mais possível acreditar na perfectibilidade do ser humano.

O estilo de Natércia é francamente tributário da tradição moderna, lembrando especialmente a frase veloz, de recorte cubo-futurista, do Oswald de Andrade de Memórias sentimentais de João Miramar (1922). Estilo marcadamente elíptico, que espalha numa sequência de frases curtíssimas apenas os elementos mais significativos e convoca o leitor a fazer as ligações de sentido. Quase se poderia chamar poema cada um dos textos, cujas frases são dispostas na página ao modo de versos; não compõem parágrafos, o parágrafo é uma unidade muito grande para a concisão superlativa da escritora. Em “Madame Heliodora” e “Ivone 2:00 am”, a extensão do texto é igual ou até menor do que meia página – sendo de uns exíguos 10 por 15 centímetros o formato do volume. Haverá quem chame de minicontos os perfis de Natércia, mas eles estão mais para poemas-piada ou quase-haicais. Nos quais abunda o vocabulário chulo, aqueles termos que antigamente não seriam de esperar da parte de uma moça de boa família; deve ter sido também por isso que o pai prefaciador intitulou seu texto “Entenda-se essas mulerez”; aqui, lembremos, falta aquele impossível til e explicita-se a referência à famosa frase de Freud sobre a incompreensibilidade dos seres que mais estudou em suas análises.

Usando meia dúzia (ou pouco mais) de recursos inteligentemente dispostos, a ficcionista percorre a via crucis de suas criaturas, Ana fazendo “xixi demais” por estar grávida, Bianca comendo muito açúcar “porque não sabe comer ninguém”, além de ser iletrada como Queila, uma trabalhando no comércio e dizendo “É sete e oitenta, senhor”, a outra vitimada pelo gerundismo; a narradora exercita sua cortante crueldade, ainda, sobre Célia, a frígida; Daphne, abandonada pelo namorado que não lhe suportava o estilo “pode crê”; Eneida, “balzaca” pela qual nenhum homem se interessa; passa por Gilda, cujo calcanhar não cabe no salto “agulha” do sapato, e chega a Samira e Ticiana, nem tão oprimidas apesar de a segunda dispor-se à objetificação sexual. Encerram a lista: Uiara, metida a intelectual, que todo mundo “acha um saco”, mais Ximena e Zaira. O último texto é o mais longo do livro, ou seja, ocupa uma página inteira daquele formato mínimo. Zaira, finis coronat opus, procura consolações em práticas de vida alternativas, “acredita em tudo”, mas sonha com o “ex-Maridão” submetendo-a a práticas não enunciáveis num espaço como este aqui. O que faz Az mulerez terminar com um monossílabo igualmente impublicável pela maioria dos alto-falantes.

Tudo isso pode ser que torne, por sinal, reimpublicável o livrinho de Natércia Pontes. Sinal dos tempos. Uma pena para a literatura e a liberdade de pensamento e expressão.

Título: Az mulerez
Autora: Natércia Pontes
Gênero: Ficção
Ano da edição: 2004
Edição Independente


Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

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