Um Torga dos melhores

Somente por um dos 13 contos que compõem Rua (1942) já valeria a leitura dessa coletânea do português Miguel Torga, dono de um dos mais bonitos estilos do idioma. A sétima história, intitulada “Música”, iguala ou até supera os contos machadianos que têm musicistas como personagens; é de uma tristeza pungente, além de pôr em evidência o invejável domínio da técnica narrativa que singulariza o autor.

Nascido Adolfo Correia da Rocha, Torga preferiu sempre os personagens aparentados com sua própria origem humilde, cuja psicologia analisa com a profundidade só possível aos muito capazes de empatia. Antes de viver uma temporada brasileira, quando trabalhou na fazenda de um tio seu em Leopoldina (MG), havia exercido funções modestas como porteiro e jardineiro e estudado num seminário, onde entendeu que não tinha qualquer vocação para padre. No retorno a Portugal, formou-se médico aos 26 anos e passou o restante da vida na cidadezinha natal, São Martinho de Anta, alheio à frequentação das rodas literárias, na qual se fundamentam tantas grandes reputações de escritor.

Sua vasta obra foi publicada de maneira independente, sem vínculo com nenhuma editora. Mesmo assim, algumas vezes o lembraram – e muito merecidamente – para o prêmio Nobel. Talvez apenas José Cardoso Pires, entre os ficcionistas portugueses modernos, pudesse rivalizar com Torga em termos de mestria do estilo; coincidentemente, Cardoso Pires também andou pelo Brasil, tendo colaborado na revista Senhor (bons tempos da imprensa brasileira!). Ambos foram, também, intelectuais incômodos à ditadura salazarista por manifestarem, em suas obras, solidariedade com os despossuídos e ferrenha antipatia a todas as formas de opressão.

No conto “Música”, um organista de igreja é forçado, depois de amar longamente uma moça, a tocar no casamento dela. A maneira como o escritor tece sua narrativa é admirável, levando qualquer leitor sensível a identificar-se com o drama do protagonista. Assim as demais histórias, várias tão excelentes quanto essa, todas a retratar um mundo que não existe mais: aquelas aldeias portuguesas quase paradas no tempo, nas quais não se vivia correndo contra o relógio. Se bem que é preciso ressalvar: o ritmo de vida no interior de Portugal em nada se parece, mesmo neste século tão insalubre, com o de qualquer pequena cidade brasileira que se esforce por imitar a paranoia inculcada pelos produtores do que se costuma considerar a inescapável “realidade”.

Aqui, a título de amostra do estilo torguiano, um trecho do conto citado, no qual se relata o surgimento da vocação musical do protagonista:

Era uma música lenta, repassada de paz, cheia de ressonâncias misteriosas. Vagarosas
e brancas, as mãos do velho iam-na arrancando do nada. E o menino, preso do milagre,
ficava esquecido e maravilhado, de olhos arregalados a contemplar o prestidigitador.
Vezes a fio o êxtase foi quebrado por um ruído seco, bruscos, inesperado, que só alguns
segundos depois ardia e latejava na consciência do garoto. Bofetadas do pai, obstinado
em que o filho não atraiçoasse a estrela. Mas, após dois anos de persistência,
a incompreensão do sapateiro desanimou. E os dedos do rapaz começaram a percorrer
inquietos, sôfregos, os três palmos do teclado.           

Escrita concisa e acidentada pelas frases invertidas típicas da fala coloquial portuguesa, a de Torga documenta a sabedoria popular, como na passagem do conto “Leonor Viajada” em que o narrador lembra (a propósito de um apaixonado pela protagonista) como “a prometer ninguém é gago”. E, com frequência, resvala pelo registro poético:

Viu-a atravessar sem ruído o transepto, e ir ajoelhar-se diante do altar da Virgem. Sem
saber por quê, aflorou-lhe aos dedos o Stabat Mater. O som ergueu-se, encheu o silêncio,
e o tempo deixou de ter medida. Quando ela se levantou e saiu, sem erguer os olhos para
o coro, era noite fechada. Desencantado, desceu também dos píncaros do inefável, onde
pairava, e pôs-se a caminhar no duro chão da realidade. Na rua, pouco depois, a tropeçar
nas saliências do empedrado, a vida pesava-lhe nos ombros muitos quilos a mais. (…)
Tocou. Não o Stabat Mater, angustiado. Desta vez foi um Salmo, brando como uma
carícia a um filho. Uma ternura que a si próprio se dava, não sabia por que dor futura.
E aquele afago fazia-lhe bem.      

Mais um trecho de “Música”. A emoção trai certo romantismo, não se pode negar. Haverá também leitores que notarão certa repetição temática; por exemplo, duas das histórias terminam em suicídio. O conjunto de Rua, porém, é tão boa introdução ao estilo do ficcionista como aquelas outras coletâneas magistrais: Bichos (1940), Contos da montanha (1941) e Novos contos da montanha (1944).

Mesmo sendo grande a tentação de transcrever mais, terminemos com a referência a outros enredos: “O Estrela e a mulher”, história de um casal de velhos tão unidos, na simplicidade de sua vida comum, que a mulher morre logo depois de perder o marido; “Uma dor”, em que o protagonista é obrigado pela mulher a esquecer, por conta de suas aventuras passadas, até mesmo a filha que tivera nos Estados Unidos, cujo retrato é obrigado a rasgar; “O Teixeirinha”, tratando do comerciante que, convalescente de um sério problema cardíaco, retorna a sua loja para descobrir que a antiga autoridade de proprietário, por lá, já não vale mais; “A reforma”, expondo os momentos iniciais da aposentadoria de um guarda civil, o qual também descobre que seu prestígio de ontem já não tem mais nenhuma eficácia. E o livro termina com “Uma luta”, divertido relato do embate entre um velho militar e seu médico acerca dos negaceios do primeiro em seguir o rigoroso regime que lhe prescreve, contra a diabete, o segundo.

Menção especial merecem “Leonor Viajada” e “O Senhor Cosme”, tristes histórias de uma vendedeira (sic) de frutas que havia sido mulher belíssima obrigada, tendo-se deixado seduzir por fantasias, a emigrar para o Brasil e aqui prostituir-se; e de um funcionário de loja que, escolhido pelo patrão para desposar-lhe a filha, sofre o desprezo da moça e, em seguida, a desilusão de saber-se enganado por todos, menos por ela.

Rua é, pelas qualidades citadas e por outras mais, obra representativa do que de melhor se produziu na literatura portuguesa moderna. E, claro, bela introdução à obra de um de seus melhores e mais prolíficos autores.

Título: Rua
Autor: Miguel Torga
Gênero: Contos
Ano da edição: 2001
ISBN-10: ‎8520912087
ISBN-13: ‎978-8520912089
Selo: Nova Fronteira


Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas.

LEIA TAMBÉM