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Maria Moura e as brotoejas morais | Jornal UNIFAL-MG

Maria Moura e as brotoejas morais


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Apesar de seu volume algo assustador, 600 páginas, Memorial de Maria Moura (1992) é um livro de leitura leve. O estilo da autora de O Quinze (1930) continuava, seis décadas depois de sua estreia na ficção, pautado pela fluência e pela clareza que a fizeram tão popular. Entretanto, se nesse tempo Rachel de Queiroz avançou algumas casas em sua arte como romancista, jamais conseguiu igualar a proeza que foi aquele clássico moderno em termos de equilíbrio da arte com a intenção crítica.

O último romance da escritora cearense, como o primeiro, tem uma mulher no centro da ação, mas desta, agora, pode-se dizer menos que seja uma projeção ficcional da autora. A Conceição de O Quinze, mocinha esclarecida em pleno sertão nordestino, lembra muito a jovem que deu à ficção brasileira um de seus melhores livros. Maria Moura, porém, é uma personagem na qual a porcentagem de ficção terá sido muito maior. Isso deve explicar, em boa parte, por que a escritora perdeu a mão na caracterização psicológica da protagonista, ainda que se tenha excedido na qualidade em termos de caracterização da paisagem regional.

Vários são os narradores, mas alguns deles ficam pelo caminho, à medida que vão perdendo importância no enredo. É o caso dos primos de Maria Moura, Tonho e Irineu, que se tornam apenas, depois que se dá seu enfrentamento com ela, nomes mencionados às vezes. Os primos queriam dividir a fazenda que Maria herdara da mãe, e ela acaba com o assunto pondo fogo na sede da propriedade e fugindo, para em seguida converter-se numa espécie de versão feminina de Lampião. A principal qualidade dessa intriga consiste no fato de, como em João Miguel (1932), o leitor se ver envolvido na ação desde a primeira cena.

Permanecem como narradores a própria personagem principal, o Beato Romano e Marialva, a irmã de Tonho e Irineu. Até bem perto do desfecho, poucos leitores imaginarão que os três destinos ainda podem ser entrelaçados numa ação única.

O Beato Romano, que abre a narrativa, era um padre. Sua vida era a normal para qualquer vigário do sertão nordestino até que ele se apaixona por uma mulher casada. Bela, cujo marido vivia ausente por conta da exploração de minas de ouro, tanto insiste que o padre se torna seu amante. Ela engravida, o caso termina numa tragédia medonha que o faz o padre virar fugitivo. Chegando à fazenda de Maria Moura, ele é acolhido e adota essa personalidade fantasiosa, fingindo ser um daqueles religiosos comuns no Nordeste da época, espécie de rezador de ofício que às vezes tem acessos de pregador e profeta. O enredo é ambientado no interior cearense, na época do imperador Pedro II, portanto já não muito longe do fim do século XIX.

Antes de estabelecer-se na Serra dos Padres, onde toma posse de terras que dizia terem sido compradas por um antepassado, Maria Moura fizera aumentar muito o seu bando, inicialmente feito de agregados da fazenda incendiada, e conseguira construir uma espécie de castelo tosco, a Casa Forte, guardado por jagunços de procedências diversas, mas todos dispostos a cometer crimes sob o comando de uma jovem até pouco tempo antes chamada de “sinhazinha”, ainda que dotada de uma inteligência estratégica que faria inveja à maioria dos marechais. A comunidade vive de roubar gado, armas e dinheiro de viajantes que passem pelas redondezas, num tempo em que sertão era sinônimo de deserto e, para mencionar um dado bem significativo, o sal de cozinha era considerado luxo, tamanha a dificuldade de o conseguir naqueles ermos.

A protagonista, desde novinha, já não era flor que se cheirasse. Primeiro se tornara amante de Liberato, seu padrasto, que lhe havia assassinado a mãe; depois, industria Jardilino, um empregado da fazenda por ela seduzido, para que mate Liberato; coroando a perfídia, arranja uma situação que leva João Rufo, outro empregado, a executar Jardilino, na crença de que este tentava violentar a patroinha órfã. Praticamente sozinha no mundo, ela vai assumindo crescentemente o controle da própria vida, mas sempre por meio de desempenhos desse tipo, em que a ousadia se mescla à falta de escrúpulos.

Quando já se tornou poderosa e temida, de repente Maria Moura se apaixona por um rapaz que havia aceitado acolher – mediante régio pagamento – na Casa Forte, pois estava jurado de morte e seu pai era o fazendeiro mais rico dos arredores. Cirino, frequentando a cama de Dona Moura (como alguns já a chamam), disso se aproveita em certa ocasião para furtar armas e entregar aos inimigos, em troca de dinheiro, outro sujeito endinheirado que ela havia acoitado. Na esteira dessa ação, Cirino mata dois dos mais considerados agregados da Casa Forte, incorrendo na ira da chefe jagunça, nesse ponto do enredo também já enriquecida, proprietária de muito gado, dinheiro e joias.

Daí por diante, convergem cada vez mais os destinos dos três narradores. Marialva chega, com seu marido e o filhinho, para morar na fazenda da Moura. O marido, Valentim, é um saltimbanco, tocador de rabeca e atirador de facas que até aí vivera, muito pobremente, de apresentações em feiras religiosas pelo sertão. E é nessa amarração de destinos que o romance começa, ao menos em termos de verossimilhança, a desandar.

Se já era improvável os homens de Maria Moura, alguns deles sertanejos originalmente honestos, aceitarem sem questionamento se tornarem salteadores de estrada; se era um pouco menos crível que, entre eles, os mais destemidos e adestrados em armas se sujeitassem ao comando de uma mulher, mais difícil de ocorrer no mundo real é a ambivalência moral da protagonista, que oscila entre a dureza necessária à bandidagem e uma gentileza e generosidade que lhe surgem de repente no caráter – como se fossem brotoejas morais – e, no caso de sua paixão por Cirino, resultam num caso exemplar daquela tibieza que Hamlet atribuiu ao sexo feminino: “Fragilidade, teu nome é mulher!” Talvez fosse melhor colocar Freud nessa história…

É o que o tal Cirino se revela capaz de todas as vilanias. Certo, Maria Moura acaba arranjando um jeito engenhoso de mandar matá-lo, mas sofre imensamente com isso. Esse drama amoroso pode ser posto na conta do lastro romântico do livro, e muitos leitores o acharão a melhor parte. Mas mesmo estes é provável que fiquem bem desagradados com o final aberto – num tipo de romance em que tudo aponta para a solução inequívoca de todos os conflitos.

Além dessa inverossimilhança de base, a psicologia da protagonista, há vacilos importantes na condução narrativa. Não são poucos, mas talvez o mais flagrante seja uma cena erótica, recordada por Maria Moura, que indica certo desconhecimento de causa a respeito do que pode ocorrer entre amantes adormecidos.

É um bom romance, o Memorial. Mas o leitor que ainda não conhece O Quinze ou João Miguel ganharia mais se lesse um deles, que, além de serem muito melhores, têm um quarto do número de páginas.

 

Título: Memorial de Maria Moura
Autora: Rachel de Queiroz
Ano da edição: 1992
ISBN: 9788526705005
Selo: Siciliano

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