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E os piolhos dos decapitados, para onde vão? | Jornal UNIFAL-MG

E os piolhos dos decapitados, para onde vão?


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Com As horas nuas (1989), Lygia Fagundes Telles parece ter encerrado sua experiência no romance – se não deixou, é claro, algo inédito. E terá feito muito bem, pois o livro indica um projeto romanesco esgotado, tanto que consiste, em boa medida, numa reciclagem de personagens e situações das três narrativas longas que a escritora paulistana publicou anteriormente. Circunstância agravante, As horas nuas inverte a trajetória ascendente que a romancista vinha cumprindo desde sua estreia no gênero com Ciranda de pedra (1954).

Lygia foi um dos maiores contistas brasileiros. Algumas de suas narrativas curtas merecem figurar em qualquer antologia do conto brasileiro: “Natal na barca”, “Venha ver o pôr-do-sol”, “Biruta” – este, um dos mais tocantes que alguém já escreveu em língua portuguesa. Quanto a seus romances, foram uma construção mais lenta e árdua, como normalmente se passa com qualquer escritor exigente em relação a seu ofício; por análoga razão, não é todo poeta que produz epopeia.

O maior problema de As horas nuas é a falta de unidade, e isso começa pela mobilidade do foco narrativo: ora é a protagonista o narrador, ora um ente não identificado e onisciente, ora o gato Rahul, por sinal o mais interessante dos três – ainda que em prejuízo da verossimilhança, pois sua mente felina demonstra mais descortínio existencial que todos os humanos da história. Se fosse apenas mais inteligente que as demais personagens, talvez o leitor o pudesse considerar até bem plausível.

Rosa Ambrósio, atriz rica e decadente, é a personagem principal. Aos poucos vamos sendo informados – os dados vêm de várias fontes, de acordo com o modo que o narrador de plantão encontra de colocá-los em seu discurso – sobre as circunstâncias da vida dessa mulher ao mesmo tempo refinada e fútil. No presente do enredo, ela anda bebendo muito devido a um complexo de razões afetivas: perdeu seu secretário e amante Diogo, bem mais jovem, mantido à custa de mimos caríssimos (como um Porsche); aborrece-lhe tremendamente a fixação de sua filha, teatralmente chamada Cordélia, por homens muito mais velhos; morreu-lhe há tempos o marido Gregório, um professor universitário torturado pelo regime militar, de quem ela gostava mesmo traindo-o. Que a morte de Gregório tenha sido um suicídio, porém, só quem sabe é Rahul, em cuja consciência transcorre parte significativa do enredo.

A meio caminho, entra na história a psicanalista Ananta Medrado, que também é médica e ativista social. Suas anotações sobre os pacientes ajudam a esclarecer mais um pouco a situação de Rosa, cujo problema existencial está muito relacionado à aproximação da velhice: ela está chegando aos 60 anos e não se conforma à inexorável perda de sua beleza, tampouco ao ostracismo como atriz depois de ter feito muito sucesso.

Como nos outros romances de Lygia, ninguém aqui tem problemas de dinheiro. Ou melhor, Rosa os tivera quando menina, por pertencer ao ramo pobre da família onde brilhava, bem no centro, uma tia muito rica, por isso apelidada Ana Grana. Foi a herança dessa parente que deixou a protagonista tão abastada, pois é evidente que não poderia ter sido o teatro, ao menos não naqueles tempos em que o sucesso nos palcos ainda não significava contrato de exclusividade com a Globo.

Desde o princípio da narrativa, é mencionado o nome de Miguel, e o leitor é levado a desconfiar que ele terá importância no enredo. Essa expectativa cresce a partir da metade do relato, mas apenas bem perto do final se confirma, com a revelação de que Miguel havia sido o grande amor de Rosa na juventude. Ocorre que o rapaz, além de ser um projeto de bicho-grilo, não tinha planos de casar-se com ela e morreu na flor da mocidade – presumivelmente, devido ao uso abusivo de drogas. A cena em que Rosa encontra Miguel morto, nos braços da mãe, é um belo Stabat Mater, talvez o que exista de mais emocionante no livro.

Tal assertiva é até um pouco injusta com o estilo de Lygia, que atinge alguns cumes vizinhos da grande poesia, principalmente quando quem fala (ou pensa) é o gato. Contrapostos a tais cumes, existem alguns cacoetes muito chatos, como a insistência em corrigir por “teorema” toda vez que alguma personagem diz a palavra problema, uma implicância herdada por Rosa a Gregório. Outro, a mania da protagonista com a interjeição “Ô, meu pai”.

A narrativa ganha um tom de romance policial quando, um pouco adiante de sua metade, a psicanalista Ananta desaparece. Aí entra em cena um primo da moça, que, interessado em encontrá-la, acaba conduzindo a atenção do leitor, temporariamente, para outras paragens. Mas o caso não se resolve, pois a história termina e ficamos sem a mínima ideia de aonde poderia ter ido parar Ananta.

Foi o jeito que a escritora encontrou para encerrar seu livro: Roberto Medrado, recolhendo informações sobre o paradeiro da prima, vai entrevistar Rosa Ambrósio, mas precisa encontrá-la numa clínica de reabilitação para viciados em álcool. Nesse lugar, na verdade um hospício, será possível entender um pouco melhor a extensão da autorreciclagem praticada em As horas nuas – pois talvez o leitor perceba que Rosa Ambrósio é a última versão daquela Virginia de Ciranda de pedra (1954). Infelizmente, não uma versão muito melhorada, pois Virginia – assim como as protagonistas dos romances seguintes – participava de dramas muito mais significativos.

Nas cenas finais, a protagonista está registrando num gravador suas memórias, que teriam exatamente o mesmo título do romance. Mas é provável que nada surgido daí seja tão interessante como a especulação de Rosa, lá atrás, a respeito do que ocorreria com os piolhos dos presos decapitados pela Revolução Francesa. As melhores passagens do livro são aquelas que tocam o nonsense.

 

Título: As horas nuas
Autor: Lygia Fagundes Telles
Gênero: Romance
Ano da edição: 2010
ISBN: 9788535916447
Selo: Companhia das Letras

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