O que faz de Tropical sol da liberdade (1988) representativo de uma época é sua evocação dos momentos mais dramáticos da ditadura militar que se abateu sobre o Brasil em 1964. Afinal, como profetiza um de seus personagens, “Quando tudo isso passar, todo mundo vai esquecer” e “quem falar nisso ainda vai passar por mentiroso”: a hipótese do pintor Luís Cesário poderia parecer absurda na época em que o livro foi escrito, com os ventos da abertura democrática ainda soprando fortes, mas nenhum leitor a estranhará hoje, depois de assistir à recente tentativa de volta dos que nunca se foram.
De resto, o romance de Ana Maria Machado é um livro chocho. Sua protagonista é uma escritora que não consegue escrever, Helena Maria Andrade. Aliás, não consegue sair da imobilidade forçada por um pé machucado e pelo impasse existencial. Lena está em casa da mãe, com quem tem uma relação meio problemática, e alterna seus tímidos ensaios de voltar à vida normal com as recordações de episódios da crônica do golpe, desde sua gestação no governo Goulart até a distensão política que resultou na anistia em 1979, passando pelo assassinato do estudante Edson Luís e pela manifestação de protesto gerada por ele, tudo culminando no Ato Institucional 5, o famoso “golpe dentro do golpe”.
A matéria histórica do livro é muito relevante, mas não deixa de ser repetitiva em relação a obras que abordaram antes o mesmo processo, como Em câmara lenta (1977), de Renato Tapajós, e O que é isso, companheiro? (1979), de Fernando Gabeira. Ademais, ficamos esperando por mais de trezentas páginas pela integração entre os dois planos da narrativa, o da memória afetiva da protagonista e o da memória política coletiva. O que estrutura o enredo é um constante vaivém entre ambos, mas eles nunca se fundem num amálgama convincente.
Não é porque o romance não tenha um objetivo claro. Ele fica bem expresso neste trecho referente ao projeto de Helena para uma peça de teatro: “juntar as entrevistas, analisar as cartas e depoimentos, misturar os fatos dos recortes da imprensa com as lembranças doídas da memória, tentar ordenar os fragmentos”. Ocorre que, além de ser um objetivo já realizado antes por diversos escritores brasileiros, em Tropical sol da liberdade ele fica projetado para depois do desfecho, quando Helena finalmente decide que vai superar seus impasses e voltar à vida normal. Se for o próprio romance o resultado de tal decisão, será bem decepcionante.
Mas o livro tem pontos altos. Sua evocação do enterro de Edson Luís é uma passagem muito bonita e tocante, sobretudo para quem imagina que nunca houve cidadania verdadeira no Brasil. No plano das memórias afetivas, a agonia do piano da família funciona como uma bela alegoria para a dimensão cultural que se perdia com o mergulho no autoritarismo. Outro episódio muito interessante é aquele em que o avô de Helena aluga jabuticabeiras para que as crianças da família desfrutem delas por algumas horas.
Ao reconhecer esses momentos felizes da escritora, é-se obrigado a pontuar que eles são como que uns poucos oásis numa prosa cheia de clichês, presa a um estilo mais jornalístico do que literário – o que não havia sido problema no livro de Gabeira, por exemplo – e padecente da mesma falta de rumo que a protagonista. “É sempre nos meus pulos o limite”, diria Carlos Drummond de Andrade, que a escritora tanto gosta de citar: um fato do cotidiano de Helena, às vezes parecendo não ter nenhuma importância, acaba por remeter à lembrança que esclarece certo aspecto da ditadura. E, assim, o livro caminha a passo trôpego, desafiando a valentia de qualquer leitor que não o esteja lendo por um motivo situado para além do princípio do prazer. Como foi o caso deste resenhista, convicto da relevância profissional de conhecer o que a editora do romance anunciou como “A história dos anos de repressão e da juventude brasileira pós-64 na visão de uma mulher”.
Título: Tropical Sol da Liberdade
Autor: Ana Maria Machado
Gênero: Romance
Ano da edição: 2012
ISBN: 9788579621291
Selo: Alfaguara